O retorno da alegria



[Não penses]

Não penses. Não penses.
Os pensamentos são como a chama
que de alto a baixo tudo consome.

Perde a razão,
endoidece de embriaguez e assombro,
e de cada broto nascerá a cana-de-açúcar.

A bravura é demência, tira-a da cabeça, renuncia!
Como o leão e os homens, renega as vãs esperanças.
Os pensamentos são armadilhas,
é proibido desperdiçá-los.

Para que tanto sacrifício por migalhas?
Se não te absténs desse alimento,
é inútil querer livrar-te de tais ardis.
Se a avidez reclama, sê surdo aos seus apelos.

Esta é uma poesia de Rumi, um dos maiores poetas místicos de todos os tempos. Ele viveu no século XIII e era filho de um teólogo. Estudou com ele e outros sábios e veio a se tornar mestre com 37 anos, tendo vários discípulos. Nesta altura de sua vida, Rumi encontra Shams de Tabriz e desse encontro extraordinário se inicia uma nova tradição mística.

"Esse longo encontro fundiu dois homens espiritualmente realizados, duas almas em idêntica condição de despertar, dois espíritos igualmente sedentos de um confidente com quem pudessem trocar, como jamais haviam feito, seus estados mais sutis de entendimento e experiência mística. O encontro de Rumi e Shams ficou conhecido na tradição sufi como o "encontro de dois oceanos".

Shams possuía um comportamento irrequieto, de um buscador insaciável. Retiro aqui uma descrição contida na introdução dos Poemas Místicos, escrito pelo tradutor da obra José Jorge de Carvalho:

"Shams de Tabriz tem sido descrito um tanto duramente por algumas pessoas. Dificilmente ele teria a aprovação dos homens de poder ou dos escritores oficiais. Por outro lado, seus simpatizantes descrevem-no como alguém tão discreto que era capaz de viver numa cidade por anos como um desconhecido, evitando que seu disfarce favorito, o de um simples mercador, fosse descoberto. Conta-se, por exemplo, que ele passou um ano em Damasco e sua única refeição ocorria em uma visita semanal a uma hospedaria, onde pedia uma tigela de água em que haviam cozinhado uma cabeça de ovelha, após haverem dela tirado os restos de gordura. O dono da hospedaria acabou reconhecendo a eminência espiritual do freguês e, em sinal de respeito, deu-lhe um dia uma tigela de boa sopa e um pedaço de pão fresco. Ao perceber que havia sido reconhecido, o santo homem retirou-se com a desculpa de que iria lavar as mãos, e sumiu da cidade."

Acho engraçado como grandes histórias começam por encontros singulares. Imagino como seria nossa imagem de Sócrates se não houvesse um Platão, ou como seria o cristianismo se Jesus tivesse escrito seu evangelho. Após o encontro arrebatador, Shams continua sua vida de peregrino incógnito e deixa Rumi desolado. Contudo, o vazio deixado pela ausência de Shams fecunda a alma de Rumi, inspirando-o a produzir os poemas que compõem o Divan de Shams de Tabriz, uma obra com 1700 versos.

Existe uma coincidência na vida dessas grandes nascentes da cultura ocidental: uma aversão à escrita.
Tal aversão deixa historiadores de cabelo em pé, pois se torna uma tarefa quase impossível determinar a diferença entre o mestre e o discípulo escritor. O que os historiadores desperdiçam quando se apegam à precisão é o valor inefável do encontro e seu potencial germinador. Nós não conseguimos ainda aprender a deixar ir para conservar, não entendemos muito bem como um encontro de olhares em silêncio pode permanecer vibrando em nós pela eternidade. O poder criador dos personagens silenciosos se encontra em uma atitude de doação que os eleva para além do tempo em que viveram. 

[Sai do círculo do tempo]

Sai do círculo do tempo
e entra no círculo do amor.
Entra na rua das tavernas
e senta entre os beberrões.

Se queres a visão secreta,
fecha teus olhos.
Se desejas um abraço, 
abre o teu peito.

Se anseias por uma face com vida,
rompe esse rosto de pedra.
Por que hás de pagar o dote da vida
a essa velha bruxa, a terra?

Mil gerações já gozaram
do que agora tens.
Prova a doçura em tua boca
que antes foi flor, abelha e mel.

Vamos, aceita esta pechincha:
dá uma única vida
e leva uma centena.

Certa vez Buda reuniu seus discípulos e enquanto todos esperavam um belo discurso, o mestre apenas levantou uma flor. Diante deste fato inusitado, o discípulo Mahakasyapa sorriu, e conforme diz a tradição, alcançou a iluminação. Sofremos por um apego à fixidez representada pela escrita, como se todo nosso ser pudesse habitar a estreita via dos símbolos. Vamos desaprendendo o valor dos não ditos, o peso de sentimentos pantanosos e o cheiro do desejo inconfessável.  

"Caules erguem-se das cavidades negras. Flores boiam como peixes de luz nas águas escuras e verdes. Pego um caule na mão. Sou o caule. Minhas raízes descem as profundezas do mundo, varando a terra seca e a terra úmida, atravessando veios de chumbo e prata. Sou todo fibras. 
Virginia Woolf - As ondas

Diante desse afunilamento utilitário da vida, não me espanto que seja difícil ser alegre nos dias atuais. As notícias não nos trazem esperanças e o horizonte não promete melhoras. O mais duro de tolerar é a inexistência de um espacinho para a esperança, pois todos os comentários, discussões e conversas terminam com um universal.. "é foda". Coisas ruins são facilmente elencadas, causas convocadas e argumentos selecionados... mas nas entrelinhas estamos cansados de falar, giramos e giramos sem sair do lugar.   

Deixo-lhes uma última poesia de Rumi, cortesia do leitor-doador que deixou um marcador nessa página quando encontrei o livro num sebo. Como escreveu Rumi, "Calo minha boca. Direi o resto do poema de boca fechada."

[O retorno da alegria]

Seca tuas lágrimas
e nada temas.
A alegria perdida há de voltar
sob outra forma.

Vem do leite da mãe
o primeiro gozo da criança;
mais tarde o prazer virá
do doce sabor do vinho.

A alegria suprema não conhece repouso,
passa de uma forma a outra,
num trânsito incessante 
entre o céu e a terra.

Vem do firmamento como chuva
e se infiltra na terra
para de novo subir
como um mar de rosas.

Aparece aqui como água,
ali como um prato de arroz;
agora é uma árvore vergada, 
mais tarde, um cavalo e seu dono.
Reside nas formas por um tempo,
logo irrompe e torna-se outra coisa.

Assim também são nossos sonhos: 
Dorme o corpo enquanto a alma se move.
Sonhas ser um cipreste, um mar de tulipas,
os botões da rosa e do jasmim.
Eis que a alma retorna e tu despertas;
foram-se os ciprestes, sumiram as rosas...

Não te enganes: 
tudo o que agora vês
desaparecerá como um sonho.

Não quero perturbar-te, amigo,
com minha fala atravessada.
Talvez escutes somente a Deus,
cuja fala decerto é mais clara que a minha.
Mas conseguirá mesmo ouvi-lo
em meio a tanto palavrório?

Todos falam do pão dourado, 
mas quem conseguiu prová-lo?
Onde encontrar repouso, ó alma,
senão no amor turbulento do coração?
Onde enxergar a luz do sol
senão nos olhos puros de Shams,
o amado que é só meu?        


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