O amor da moabita.

Disse, porém, Rute: Não me instes para que te abandone, e deixe de seguir-te; porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus;
Rute 1:16

Recolhi esta citação bíblica de um dos capítulos finais de Niels Lihne, onde este tenta demover sua jovem esposa de compartilhar de sua incredulidade religiosa. Esta cena se desenrola no contexto do século 19, Niels é um homem cético e não esconde isso de sua vizinhança e Gerda, sua esposa, uma cristã assim como sua família, abdica de suas crenças tradicionais para acompanhar seu amado. O impulso do amor a faz desprezar suas mais arraigadas convicções e seguir seu amado em um estilo de vida muito hostilizado pela sociedade de sua época, este impulso é o mesmo que move Rute a escolher seguir caminho com sua sogra. Mesmo após ser dispensada de suas obrigações familiares ela decide ir para Israel, uma terra estrangeira, por amor ao Deus de Noemi. Farei um resuminho desta história para descortinar este amor da “moabita”, o que acrescentará um tom a mais a este belo quadro de nossos amores contemporâneos, pagãos ou crentes.

O período a que este livro bíblico se refere não é exato, contendo apenas referências vagas, “a época em que os juízes julgavam” para nós significa que isso aconteceu em um passado distante pra dedéu. Abimeleque sai junto com sua esposa e filhos para procurar melhores condições de vida na terra de Moabe, seus filhos conhecem mulheres moabitas e se casam com elas. Isso soa muito tranqüilo aos nossos ouvidos, mas para um hebreu religioso essa historia de casamento com estrangeira deu muito “pano pra manga”, dirá Sansão, que, diga-se de passagem, era um dos tais “juízes” do inicio da história.

Aconteceu que todos os homens da historia morreram e Noemi decide retornar a terra de Israel, despedindo suas duas noras de segui-la. Rute decide segui-la mesmo assim, pronunciando as palavras que encabeçam este post. A primeira coisa que eu estranho é o fato de que ela é uma viúva e isso era uma coisa bem ruim na antiguidade, o que torna a decisão de seguir sua sogra Noemi ainda mais difícil de entender, porque seria mais fácil para ela permanecer na sua terra natal, onde teria ao menos o apoio de seus familiares. Temos que reparar também que em Israel as estrangeiras eram desprezadas, o que dirá uma estrangeira viúva. Poderíamos também anacronicamente pensar que seguir a sogra seria algo complicado pelo simples fato de que sogras são sogras, mas isso não vem ao caso.

Mesmo diante destas agruras anunciadas, Rute declara que seguirá Noemi para “onde quer que fores”, isso não é pouca coisa. Por trás desta simples declaração se oculta uma vontade inquebrantável que ignora todas as possíveis adversidades; antes que elas aparecessem ela diz: “o teu Deus é o meu Deus”. Sinto com essas palavras que o amor não calcula os riscos, Rute não espera que “tudo de certo”, ela nem liga. Com apenas um versículo Rute manifesta sua decisão de acompanhar sua sogra, abandona toda sua tradição natal e deixa seu nome na historia do cristianismo como descendente de José, pai do próprio Jesus. O amor faz toda abdicação frutificar na proporção de seu salto, isso é o que eu apreendo desta história e penso que nossa contemporaneidade vive momentos de “crise” nos relacionamentos conjugais porque deixamos de abdicar, nosso amor visa resultados e isso nos torna inseguros diante das incertezas que naturalmente se interpõem em nosso caminho.

O amor da moabita abdica de suas certezas pessoais em troca de uma certeza maior, isso não nos torna invulneráveis, como a própria narrativa de Jacobsen deixa bem claro, mas se aproxima do que acredito ser essencial no amor: a fé.

Para quem ficou curioso a respeito da descendência de José: E Salmom gerou, de Raabe, a Boaz; e Boaz gerou de Rute a Obede; e Obede gerou a Jessé; ...
Mateus 1:5
...E Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu JESUS, que se chama o Cristo.
Mateus 1:16

Comentários

  1. Esse texto me lembrou do meu livro preferido da Clarice Lispector. Chama-se Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Ignorar as prováveis adversidades, e se lançar no salto é ao mesmo tempo uma aprendizagem e pode nos reservar ótimas surpresas.
    Acho que graça, esperança, surpresa e amor podem dialogar bem. Seu texto parece deixar isso claro.

    segue o trecho de Lori, personagem da Clarice

    “De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um susto, pode significar cair no abismo. Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava e cair."
    Clarice Lispector ,Uma Aprendizagem 1998, p. 31.

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