Nossa intimidade poética

Me empresta suas havaianas!? 


Assistindo uma palestra de Adélia Prado, surgiu a questão sobre o amor e a convivência a dois e um convidado pôs-se a defender a ideia que para um relacionamento dar certo, os amantes devem viver em casas separadas. Questionado pela poetisa sobre o porquê de tal escolha, o homem se explicou dizendo que esse espaço era importante para resguardar a intimidade do casal, preservando o relacionamento daquele desgaste natural que a intimidade excessiva provoca como ver o seu amor acordar descabelado, com bafo, os “puns” ocasionais... isso seria um relacionamento em doses homeopáticas, “clean”, bem afeito ao ser humano descolado.. esse que já não aguenta mais conviver com outros seres humanos descolados.



A poetisa não concordou com a opinião de seu ouvinte, pois pra ela o amor precisava de uma convivência justa, próxima, com tudo o que tem direito, senão não seria amor. Eu não quero falar sobre o que a intimidade pode trazer de ruim, como a invasão de nossa vida íntima pela OTAN (aquela pessoa diz que te ama e que arromba a porta da sua casa achando que está te salvando), mas prefiro abordar o lado bom da convivência, qual convivência? Aquela que reúne dois amantes, ou em minha definição, que reúne duas pessoas que são obrigadas a terem uma vida, uma profissão, várias responsabilidades, mas que no fundo queriam estar juntas, pois sabem muito bem o que é bom na vida e valorizam isso na pessoa de seus amados.



Para os amantes o ruim é estar separado e cada segundo daquele domingão monótono é saboreado como se estivessemos comendo danette com colherzinha, aos poucos e de olhos fechados. Lentamente vão se unindo afluentes que transformam pequenos detalhes, como o jeito de se arrumar pra sair, o chinelo havaiana emprestado, o cheiro do travesseiro, até mesmo o ronco do parceiro pingaiada..rsrs em algo maior, perene, pois tomamos conhecimento, pelo outro, de características tão nossas que de outra forma nunca poderíamos perceber e com isso aprendemos um pouco mais sobre nós mesmos. Assim se forma aquele rio que banha todas as áreas de nossa existência deixando as coisas mais frescas, menos petrificadas. Vamos, aos poucos, nos tornando um lugar habitável.



Sem esta intimidade vamos secando, nos tornando áridos, tipo aquelas pessoas cheias de manias, esgotadas por possuir apenas uma  visão unilateral da vida. Penso que uma pessoa que não se abre a um relacionamento íntimo vai aos poucos se aproximando da literalidade, assim como uma palavra em estado de dicionário.



fu.la.no sm (ár fulân) Designação vaga de alguém que não se pode ou não se quer nomear. F. de tal: expressão que se usa para designar pessoa cujo nome certo não se dá, por desconhecer ou por conveniência. – Michaelis



Geralmente nas conversas que tenho com amigos que são casados ouço aquele conselho: aproveite enquanto você ainda é solteiro! Porque depois...rs Deve ser por isso que a poesia anda um pouco(totalmente) afastada de nosso cotidiano, pois não percebemos que estamos construindo uma sociedade onde a convivência não exige relacionamento, talvez isso se deva ao fato de que não percebemos o nosso papel de construtores de um novo significado para as coisas(nomes, tradições) que legamos de nossos pais, como o casamento e a família. O exercício de “dar nomes” implica uma atividade poético-experimental arriscada, compartilhada por dois serem que se lançam em um terreno desconhecido, se descobrindo a cada novo encontro e desencontro, até naqueles momentos mais bestas como aqueles em que tentamos achar a posição ideal para dormir abraçadinhos, ou “de conchinha”.



Temo que pelo fato de não possuirmos mais palavras para “dizer” a intimidade que ela seja definida por este vocabulário que possuímos, um tanto instrumental, e por isso ela se torne algo ruim, algo que nos proporciona apenas experiências sofridas e monótonas. O poeta bíblico disse que “carne e sangue não entram no reino de Deus”, eu diria que o amor não entra neste reino dos carrões SUV e êxtases de consumo que estamos construindo a custa de todo nosso tempo de vida. Será que temos consciência de que o consumo como estilo de vida está exaurindo algo que vai além da “natureza”? Não quero exercer um “Ludismo” a essa altura do campeonato, quero apenas ressaltar que quando valorizamos uma coisa, acabamos por desvalorizar outras.

Em termos atuais intimidade significa: dois fulanos tentando a felicidade debaixo de um mesmo teto.

“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem”

Manoel de Barros

Comentários

  1. Fantástico, cara!
    Li no momento certo... tô em Salvador, no quarto vazio (não sem hóspedes, mas pq saíram) de um hostel, desejando estar em casa, vendo a Renata descabelada e o Heitor fazendo pirraça.
    PS.: OTAN, literalidade de dicionário, Manoel de Barros... vc acerta nas sacadas!

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  2. haiuhaiuhaiu .. em salvador qualquer post fica maneiro!!
    agora tenho autoridade no assunto! kkkkkkk

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  3. uahuahuahahah!! Eu pensei exatamente nisso, mas não sabia se deveria comentar!! Welcome to level 2!!

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