O amor paterno

Abraão e Isaque - William Blake

Pai! Pai! Aonde vais?
Ah, não Andes tão depressa.
Fala, Pai, com teu filhinho
Senão me perderei...

William Blake

O que é o amor entre pai e filho? Você já pensou no que significa o amor que um pai nutre por seu filho e na importância que a figura paterna possui para que uma criança consiga vencer seus medos e estabelecer sua personalidade? Eu confesso que nunca pensei nisso, isso talvez se explique porque a figura paterna, representada pela tradição e pelo estabelecido, tem se sofrido um esvaziamento frente ao novos avatares que nossa cultura neoliberal vem patrocinando. Como acabei de ler no livro O tempo e o cão: “É notável a frequência com que os analistas escutam queixas a respeito do “pai fraco”, do “pai ausente”, em seus consultórios.” pg.279 Isso não tem nada a ver com um suposto mal desempenho dos pais, mas com um esgotamento de formas simbólicas no qual a função paterna costumava se fundamentar, seguindo novamente Maria Rita Kehl: “... o exercício da autoridade paterna, para o bem e para o mal, anda desmoralizado.”pg. 280.

Mais engraçado que as reclamações é o fato de que elas ainda existam, afinal a família como nós estávamos acostumados a ver (minha corajosa geração de 80) e seus atores parecem remanescentes de uma saga pós apocalíptica, tipo sobreviventes escondidos no subterrâneo, seja como for, não encontraremos mais uma família tipo “Anos Incríveis” para o qual estas reflexões ainda fariam algum sentido e o que eu queria mesmo abordar nesse post é o “amor de um pai por um filho” tendo como base minhas leituras do livro “Jovens de um novo tempo, despertai!” de Kenzaburo Oe.

Este livro não é de auto ajuda, apesar do título meio jingle de cereal matinal, e narra em primeira pessoa as desventuras do escritor na tentativa de travar contato com seu filho autista. Todo o percurso narrativo é entrecortado por citações de Blake e pelas observações perspicazes e muitas vezes cômicas do autor-pai diante das mais variadas situações que vive com seu filho, Liyo. O sofrimento de Kenzaburo pela sua incapacidade de estabelecer um diálogo com Liyo cresce junto com a perspectiva de não poder ter acesso aos sofrimentos do filho e de não poder ajudá-lo a lutar contra as adversidades que se colocam em seu caminho, como o medo da morte, a sexualidade aflorando com a puberdade, o relacionamento conflituoso com a mãe e os irmãos, mas o que comove mesmo é a sensibilidade do autor-pai em tentar perceber o que se passa no interior da mente de seu filho, esforço que o leva a escrever o livro na tentativa de compor um conjunto de “definições” acessíveis ao campo de experiências de Liyo, para que seu filho tenha a possibilidade de “enfrentar a realidade” sem depender da assistência paterna.

No inicio da obra, Kenzaburo descreve como conseguiu sua primeira definição, a do que é um pé. Graças a uma crise de gota, engatinhando pela casa para evitar a pressão sobre o pé inchado, o autor-pai topa com o pé enfermo em Liyo. Assustado pelos urros de seu pai, Liyo se esconde para depois aparecer, curvado delicadamente sobre seus pés, dizendo: “Pé bonito, você está bem? Sabe que você é muito bonito, pé?”. Você deve estar se perguntando, definição de pé? Como isso pode contribuir para comunicação entre pai e filho? Conforme o próprio Kenzaburo descreve, Liyo estava muito magoado com a família e principalmente com o pai na ocasião da topada e não conseguia se dirigir diretamente a pessoa do pai. O pé inchado serviu como um meio termo, como se o pé fosse um elemento periférico da pessoa paterna, logo, Liyo descobre na figura do pé um elo para se comunicar com o pai.

"Foi quando o vi no Zênite como uma estrela cadente,
Em queda perpendicular, veloz como andorinha ou gavião;
E ao cair sobre o tarso de meu pé esquerdo, ali penetrou;
Mas de meu pé esquerdo surgiu uma nuvem escura que se espalhou por toda Europa."

O poema narra a descida de Milton à terra e sua entrada no corpo de William Blake, citado por Kenzaburo Oe para ilustrar a predileção de Liyo por seu pé. Este exemplo revela como uma experiência poética enriquece o universo de representações capazes de aproximar pai e filho e como um exercício intelectual não é necessariamente motivado por inclinações eruditas, pode ser, e frequentemente é, um exercício de amor.

Kenzaburo empreende um esforço heroico para alcançar Liyo, pois devido a um problema físico, no caso o autismo, pai e filho tinham dificuldades para se relacionar. Hoje, possuímos outros obstáculos, outros “abismos” que separam pai e filho, qual será nosso papel no enfrentamento destas questões que se colocam num plano não mais individual, mas simbólico e cultural? Como o amor paterno se comporta em tempos de falência da figura paterna? E o que eu acho bem problemático: Como poderemos amadurecer sem a segurança da "presença do pai"?

Para fechar a ultima citação de Blake por Kenzaburo Oe.

“Nada temas, Albion, sem que eu morra, não poderás viver
Mas se eu morrer, ressuscitarei, e tu comigo”. 

Comentários

  1. Legal, hein!? Gostaria de ler esse livro um dia...
    É impressionante como tantas pessoas não têm noção de que comunicação está intrinsecamente ligada ao amor. E que se comunicar adequadamente demanda certo esforço. Muito bonito ver este autor-pai se esforçando para transpor um obstáculo tão difícil quanto o autismo a fim de estabelecer um contato profundo com o filho, em vez de se contentar com o básico e ir levando. Enquanto isso, pais de filhos que não possuem nenhuma dificuldade patológica na comunicação deixam seus filhos crescerem à margem de suas próprias vidas; suprem a falta de diálogo com presentes ou ameaças; cobram sem servir de exemplo ou fechem os olhos para problemas sérios.
    Muitas vezes, parece que ter um filho é apenas uma etapa da vida que deve ser cumprida, e a criação pode ser legada à babá ou à escola, pois os pais, simplesmente, não têm tempo.
    Meu filho vai fazer 2 anos, e há muito já praticamos com ele o hábito da comunicação, quer seja na hora de incentivar seu desenvolvimento e parabenizá-los por suas façanhas ou quando é preciso chamar a atenção e "castigá-lo" por algo de errado que ele tenha feito.
    Você já deve ter assistido "Bicho de 7 cabeças", mas vou recomendá-lo mesmo assim. É um excelente contraexemplo da atitude de Kenzaburo Oe.
    Parabéns pelo primeiro post de 2013.
    Que venham muitos!!

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