A importância do reconhecimento.

Vivian Malone Jones se registrando como a primeira aluna negra da Universidade do Alabama - 1963

Você concorda com a política de cotas nas universidades?

Eu concordo, mas confesso que nunca encontrei alguém que concordasse comigo, tanto é que já começo a me sentir meio estranho, tipo.. será que eu sou do contra? Meus amigos já estão acostumados com minha insistência em discordar, dessa coisa de defender pontos de vista exóticos, pura molecagem! Então.. vamos a mais um exercício de sacanagem intelectual.

A primeira coisa que eu ouço das pessoas que discordam é que as políticas de cotas, cujo alvo é diminuir o racismo, acaba por reforçá-lo quando enquadra uma pessoa negra num esteriótipo de pobre. A política de cotas estaria humilhando as pessoas que dela fazem uso, pois pedindo um acesso especial eu estaria admitindo que não sou capaz de entrar em uma boa universidade por vias normais. Ela também é injusta por privilegiar uma determinada raça ou classe em detrimento de uma parcela da sociedade que não se enquadra no perfil da cota, isso sem levantar a questão dos critérios, já que é difícil ter um padrão empírico do que seja negro ou amarelo.

As pessoas que discordam das cotas acreditam que existam outra maneiras de reverter essa situação sem quebrar a ordem normal das coisas. O importante seria investir em educação, proporcionando às classes desfavorecidas as mesmas chances que uma pessoa rica tem de ingressar em uma boa universidade, o que beneficiaria todos sem criar distorções. Para simplificar, quando o governo cria cotas para universidades ele está gerando vários problemas para resolver um.

Eu puxei esse assunto porque comecei a ler sobre feminismo e teoria crítica, foi quando eu encontrei a história da Rosa Parks e entendi algo que eu acho interessante a respeito das políticas afirmativas(cotas). Pode até parecer óbvio, mas eu só entendi isso agora. Antes eu ouvia, fazia sentido, mas não estava claro como está agora. A Rosa Parks é um ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e ela ficou famosa por se recusar a ceder um acento originalmente destinado à pessoas brancas. Essa atitude simples desencadeou uma série de protestos que alteraram as leis americanas e permitiram aos negros terem uma situação mais igualitária. Lembra do Forrest Gump, daquela cena dos primeiros estudantes negros a ingressarem na universidade? Pois então, nos Estados Unidos os negros não podiam ingressar nas mesmas escolas que os brancos e isso era estabelecido por lei e não foram os políticos que espontaneamente corrigiram a lei, mas isso aconteceu porque ocorreram muitos protestos.

Por que Rosa Parks é importante? Ela é importante por carregar uma imagem que permitiu aos negros se reconhecerem em uma posição de injustiça. Essa imagem que nós chamamos de "identidade" é o que possibilitou a união e a luta pelos direitos dos negros, o que seria difícil se ela não se reconhecesse como negra. Quando os outros negros viram aquela mulher ser destratada por não ceder seu assento ao branco eles puderam perceber a injustiça de sua própria condição, eles se identificaram e somente isso pode reunir aquele grupo para lutar pelos seus direitos. A luta não seria possível se eles não se percebessem como grupo. Agora, se eles olhassem Rosa Parks e pensassem: olha lá a Rosa criando problemas de novo... nada teria mudado. A nossa sorte é que eles entenderam que a Rosa Parks foi destratada não por ser rebelde, mas por ser negra.

Assim a teoria social descobriu que não é apenas mudanças na ordem econômica que podem tornar a sociedade mais justa, mas que podemos alterar a ordem social quando um grupo desfavorecido consegue se reunir e reconhecer sua situação de injustiça. Isso pode parecer claro agora, mas não era a 60 anos atrás, assim como a escravidão parecia algo natural no Brasil até o final do XIX. Alias, nosso país foi um dos últimos a abolir a escravidão, o que indica lá no XIX essa tendência do brasileiro de acreditar que instituir a justiça é obrigação do Estado... senta e espera.

O Estado pode e vai defender os valores de uma maioria(ou minoria..rs) e nunca será justo para todos, agora os que estão em uma posição superior naturalmente se identificam com uma posição de superioridade, se acreditam melhores e diferentes do resto da população. O problema é que as outras minorias ainda não se identificaram como inferiores, não se reconheceram como grupo e como excluídos.. são os Joãos, Zés da vida. O que o Estado está fazendo com as cotas é simplesmente pular a etapa das lutas e fornecer uma alternativa para equilibrar esse conflito de grupos, entre os que estão atualmente no poder e os que não tem voz no processo político.

Essa estranheza que a política de cotas gera na sociedade brasileira se deve ao fato que não nos identificamos como excluídos do cenário político e acreditamos que o Estado moralmente deve atender aos interesses de toda população. Essa dificuldade em nos identificarmos como grupo reflete em nossa dinâmica partidária acéfala, e nossa incapacidade de contestação gera essas políticas caridosas que ainda são criticadas pela população. Essa democracia mística que o brasileiro professa ignora que o governo funciona sob pressão popular e não sob um imperativo moral. O político não é um sacerdote e não precisa ser uma pessoa boa, como Toronto bem sabe, mas precisa ter sobre si pressão para nortear suas decisões.

Essa aversão do brasileiro em se identificar como grupo gera o estereotipo do fundamentalista, pois na na nossa cabeça a partir do momento que nos identificamos como negros, ou feministas, automaticamente nos tornamos pessoas preconceituosas e radicais. Ser igual, segundo Simone de Beauvoir, não significa ser idêntico, por este motivo ela defende que uma mulher não precisa se masculinizar para alcançar reconhecimento, o importante é o político se adaptar para reconhecer as nossas diferenças.

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