Ser ou Não Ser Charlie



Gosto de acompanhar os comentários a respeito do ataque ao Charlie Hebdo por expressarem o caráter dos escritores e suas posturas diante do ocorrido. O que me deixa admirado é a rapidez com que as pessoas se apropriam do atentado para defenderem suas opiniões pessoais, polarizando debate em torno do main stream "Eu sou Charlie" e do agora, mais esclarecido, "Eu não sou o Charlie".

Eu me posiciono como simpático ao jornal e às charges e acredito que o ataque piorou a situação, que já não era boa, da população islâmica da Europa. O que eu acho das charges? Acho algumas muito forçadas, mas eu gostei da que coloca muçulmanos e judeus como "Intocáveis" e da que coloca Maomé prestes a ser degolado por um extremista islâmico porque estas charges abrem um espaço que eu acredito importante, tanto para os "alvos da charge" quanto para nós ocidentais democráticos, de relação entre ambas as partes. O que as charges fazem é uma provocação, algo que quem já foi ironizado entende muito bem, e esta provocação pode ser entendida como uma mera ridicularização xenofóbica, ou pode ser entendida como uma abertura para um diálogo que, pelas vias normais, sem este "ridículo" nunca seria possível.

As charges eram respostas as mensagens de horror que os radicais islâmicos nos endereçavam e incluíam os islâmicos no universo ocidental do ridículo, coisa que eu nunca tinha visto antes. Assim, não seriam as charges uma canal de diálogo? Por que o ridículo é algo ruim em si? Seria o ridículo algo equivalente à decapitação diante de câmeras?

O espírito da charge é o de quebrar o impossível pela risada, conectando coisas antagônicas pelo humor. O atentado é a continuação funesta de um diálogo formado entre arte e força, por isso admiro os chargistas do Charlie Hebdo, pois eles se colocaram diante dos terroristas e estavam dispostos a responderem suas ameaças, ainda que com o preço de suas vidas. Por isso eu acredito que defender o Charlie Hebdo é defender uma maneira diferente de responder a mensagem de violência.

O mundo ocidental está cada vez mais isolado do universo muçulmano, existem poucos canais de comunicação e o que me desperta calafrios é a impressão de que todas as pessoas estão escolhendo o ódio e o medo. Este entrincheiramento mútuo é prejudicial para todos, tanto para os partidos conservadores quanto para os radicais islâmicos e isso acontece quando não nos colocamos em posição de diálogo, quando não respondemos às mensagens de violência, isso tanto da parte ocidental quanto do universo islâmico.

Pensar que o atentado pode ser explicado pelo contexto de violência à comunidade muçulmana na França é fortalecer a dinâmica de violência que vem dominando o relacionamento entre ambas as partes, é um esforço de retoricamente diminuir o absurdo do atentado e justificar a violência. Quero dizer que o horror dos assassinatos dos membros do Charlie não me leva, necessariamente, a odiar os muçulmanos. E para aqueles que são críticos das operações militares no Oriente Médio, acredito que o Charlie Hebdo se colocou de uma maneira diferente - corajosa -, pois pelo ridículo dos desenhos eles contestavam a mensagem que os terroristas nos endereçam, sendo que a religião não era o foco dos chargistas e sim a apropriação pessoal dos dogmas para justificar as barbaridades que se perpetravam mundo afora, tanto pelos islâmicos quanto pelos cristãos.

O Charlie Hebdo se tornou um alvo quando apontou aos nobres terroristas, "Mártires", que o que eles estão fazendo é ridículo e pessoal, nada muçulmano, e por isso eles foram atacados e não uma base da OTAN, porque pior que um inimigo armado é um inimigo que nos diz a verdade, ainda que pelo ridículo da charge.

A esfinge do conflito Ocidente-Islâmicos nos coloca uma questão da qual não saímos ilesos pela ignorância e ao redor do qual se multiplicam cadáveres. É ótimo pesquisarmos o pano de fundo do conflito, entender a cultura islâmica, o que eles vem sofrendo com essas intervenções militares e a situação de segregação nos países metropolitanos, isso nos faz entender o extremismo de seus atos e o desespero que permeia essa propaganda do terror. Sendo a compreensão um bom começo para a criação de oportunidades de diálogo.

Numa discussão a respeito do direito das mulheres, um comentário foi feito condenando a cultura islâmica por colocar as mulheres como inferiores aos homens, sendo a esposa uma especie de objeto de posse do marido. Perguntei qual era o aspecto bom da cultura islâmica e obtive como resposta que não haviam aspectos bons... daí eu disse que ela nunca mudaria a realidade das mulheres no islã, simplesmente porque ela não conhecia a cultura islâmica. Algo somente é totalmente ruim quando não o conhecemos e sem o reconhecimento do outro não existe diálogo.

Depois de ver as cenas do atentado um silêncio invadiu meu ser e pude sentir o desespero e o ódio dos terroristas pelas as ruas de Paris, por isso acho um pouco leviano essas teorias da conspiração. As vezes é difícil reivindicar o catchup do sanduba, porque nos acovardamos diante da vendedora feroz por estar trabalhando sábado a noite, não sei como achamos surpreendente todos os terroristas terem morrido nos cercos. Como prender dois homens armados, treinados, dispostos a morrer e aquartelados? Se o cerco falhasse por uma tentativa de captura, e eles invadissem uma escola, quem iria se responsabilizar por isso? Essas hipóteses não levam a serio as vidas que se perderam nesses atentados.

O Charlie Hebdo não tinha como alvo a comunidade islâmica hostilizada da França, mas as mensagens dos terroristas, por isso acho infrutífero relacionar os chargistas com um exercício de segregação. Tento imaginar um muçulmano rindo das charges, isso pode parecer absurdo não? Te digo, por experiencia própria, que ser o alvo da chacota não nos faz menores, mas nos abre uma oportunidade de contato, pelo riso. Podemos nos sentir humilhados, mas isso é uma opção nossa e não tira a nossa dignidade nem o nosso sangue.

Rir, para os terroristas, seria um ato de fé, assim como nós precisamos de fé para compreender esse atentado e o diálogo será um ato de fé e coragem, algo não muito comum em nossa civilização de comentaristas instantâneos.











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