A flor do carma

O avocado que bravamente se lançou a vida

"O uso adequado das posses leva à revelação, exteriorização e realização, no que respeita aos outros seres humanos e à nossa própria individualidade, isto é, de quem somos. Uma pessoa compreende o que ela é em consequência de usar o que possui; ela demonstra o que é, a si mesma e a todas as outras pessoas, pelo uso do que recebeu por ocasião do nascimento juntamente com o que veio a adquirir posteriormente." pg 73

Quando conversava sobre espiritismo e o tema do carma aparecia, sempre me incomodava, pois sentia que a existência não podia ser compreendida como um crediário das Casas Bahia. Encarnaria apenas pagar infinitas prestações de coisas que eu fiz em outras vidas, ou seja, não fiz? Isso me parecia uma coisa sem sentido, um rebaixar a experiência da vida para servir a um critério técnico, um cálculo moral. A ideia de carma me pareceu uma maneira fácil de explicar o inexplicável que é a vida, tipo, você matou e fez merda para um monte de gente e ainda morreu de boa, velhinho, cercado por sua família em uma casa de frente para o mar no Havaí? Não vai escapar na próxima vida! Vai vir como um pobre em alguma favela indiana, filho de um pedófilo, sei lá.

Outra coisa que eu me perguntava era: quem nascerá na próxima encarnação do Hitler? E se for eu!?

Depois de algum tempo comecei a me deparar com esse assunto novamente, mas na astrologia e na psicanálise. Primeiramente, fui me aproximando do tema da herança, da ancestralidade, de que maneiras nos constituímos na existência e somos influenciados pelo cenário inicial de nosso nascimento e criação, percebendo que o passado tem um efeito avassalador sobre a fundação de nossa personalidade. Sempre me questionei sobre o papel de nossa condição inicial para a delimitação de nossa potencialidade e dos limites que possuímos, seriam todos dados no momento de nossa concepção? Em que medida podemos nos libertar das condicionamentos iniciais de nosso passado e nos lançar numa vida mais plena e significativa?

Em minhas últimas leituras sobre as casas astrológicas, me deparei com um texto de Dane Rudhyar sobre a casa 2 e uma explicação muito bela sobre o carma e a maneira como usamos o que adquirimos, tanto pela ocasião do nascimento quanto na vida adulta. Nesse sentido, o carma deixa de ser uma metáfora asseguradora de uma instância inescapável da"justiça"(que nos fazia dormir tranquilos mesmo com todas as injustiças que nos cercam) e passa a ser algo mais harmônico com a experiência da vida, colocando em primeiro plano a maneira como usamos as nossas posses.

Aqui, encontramos novamente o "assassino que fez merda para um monte de gente e morreu feliz cercado por seus familiares". Normalmente tentaremos provar que este cara teve problemas, algo do passado o atormentava e se isso não aconteceu ele provavelmente será um verme na próxima vida...e por ai vai, mas deixemos essa fúria de lado e perguntemos: qual o uso que este homem fez de seus potenciais? De acordo com nossa descrição, a pior possível, mas o que eu gostaria de enfatizar é, diante de todas as possibilidades, as decisões tomadas formaram a identidade de nosso personagem. Qual identidade? A de todos os condicionamentos que lhe foram dados de seu passado. Nós recebemos uma condição inicial de possibilidades e diante disso temos duas escolhas: reproduzir e perpetuar o que meus ancestrais e o passado me legaram, ou fazer algo novo, algo que seja significativo para minha individualidade num sentido nunca antes expresso.

Continuando a primeira citação
"O ideal seria que transformasse esses bens em termos de sua finalidade individual e de seu destino. Mas isso dificilmente pode acontecer se a pessoa não for além do uso tradicional dos seus bens, pois então ela atua meramente como serva do passado, como um agente de fantasmas, do carma - sejam eles individuais ou sociais. Sua vida, portanto, é vivida por seus ancestrais, ou em termos de perpetuar os privilégios socio-culturais deles herdados ou de ser impelida por antigos ódios e temores sociais e religiosos." pg73

A questão carmica mais importante é o uso de nossas potencialidades herdadas e as consequências que daí advirão. Cada geração recebe um conjunto de potencialidades que pode ou não perpetuar, continuar e reproduzir uma ideia de posse que visa a mera satisfação individual é, justamente, negar a individualidade em prol de um legado que não foi questionado nem re-significado. A era do individualismo será, curiosamente, a era em que menos se exerceu a individualidade.

O carma é este peso que docilmente carregamos pelos dias úteis de nossas vidas e que iremos entregar a nossos filhos... essa é a justiça implacável, inexorável, da qual ninguém escapa, nem assassinos, nem pacatos pais de família, todos participam das infinitas cadeias da vida. Podemos reproduzir a violência e a corrupção, a apatia... ou talvez mudar, não vejo nenhum problema em todas as possibilidades que a vida nos brinda.

O mal é a covardia diante do novo, diante de nossa tarefa singular.

Que valor damos a isso que recebemos? De que forma usamos o que possuímos?

"O proprietário herda tudo quanto possui da história da biosfera e da sociedade humana. A única coisa que pode dar valor e sentido a seus bens é o uso que ele lhes dá. O que dele se requer é que esse uso dê um novo valor e um novo significado criativo à vasta maré da vida na Terra e da sociedade humana"

Acredito que o carma vem sofrendo de uma má interpretação cármica que espero ter ajudado a tomar um rumo diferente.

Entender o carma é compreender que toda flor brota por pura coragem e que a chuva cai generosamente - sobre justos e injustos
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