A orgia é o que nos resta

Eu sinto algo estranho quando passo ao lado daquele restaurante de rodízio Bovinus. Não sei se você já sentiu isso, mas quando olho aquele prédio imenso, com várias janelas fechadas e aquele letreiro vermelho, isso me lembra uma espécie de puteiro, tipo um prédio daqueles tenebrosos que eu via em jogos do naipe Max Paine. Sinto que o capeta mora ali dentro e que seus visitantes participam de um culto secreto.

Pensando nisso, comecei a viajar na ideia do por que nós permitimos certas orgias e outras não, você já pensou nisso? Esse caso do Bovinus, nós achamos bonito comer carne até o cú fazer bico e as pessoas até se gabam disso, tipo quando visitam um rodízio de pizza e comem 20 pedaços e dizem: uau já comi 20 pedaços! Aí aparece outro e diz que já comeu 30. Comer é uma orgia permitida nos rodízios. Mas se pensarmos rápido, percebemos que para manter essa disponibilidade de comida, nós teremos que transformar o planeta numa grande fazenda, coisa que não combina com a ideia de sustentabilidade ambiental. Acontece que nós não admitimos isso, nunca ouvi alguém falar: meu, vamos inventar um jeito de transformar todas as florestas em fazendas – de forma sustentável – é claro. Assim, poderíamos comer Big Tastes imensos para sempre! Enquanto isso, vamos silenciosamente cortando florestas para criar gado e soja. Comer é uma orgia permitida, mas não gostamos de admitir isso.

Outra orgia que permitimos é a violência policial. O que sente um policial militar vestindo armadura, portando bombas e sua calibre 12 com balas de borracha diante da multidão se dispersando? A correria e aquela distribuição de hematomas e gás lacrimogênio por todos os lados, imagine o prazer que ele sente vendo a multidão fugir ante sua presença, poder desferir tiros a esmo, borrifar um spray de pimenta em um manifestante impertinente. Isso é quase um GTA ao vivo. Policiais da Rocam em suas motos, alta velocidade, perseguindo jovens revolucionários..uau! Por que tantas bombas? Pensa o manifestante aturdido, que excesso não? É porque isso não é restabelecimento da ordem, é uma orgia. Não conseguimos admitir, mas ser sádico é prazeroso. Basta dar uma olhada na maioria de games que nossas crianças jogam e perceberemos que elas adoram atirar em tudo.

Sofrer também pode ser ... prazeroso. Imagine o que sente um jovem que protesta ensanguentado, gritando palavras de ordem, resistindo à violência do Estado por seus ideais - uma orgia revolucionária! Normalmente, esse é o sonho de todo jovem que quer se sentir relevante politicamente, afinal, não existem mais ocasiões para que isso aconteça. Talvez nos sintamos relevantes quando vamos para uma micareta e bejamos 30? 100 curtidas na fotinho do Face? Ou melhor, colocar uma foto protestando no Face!? No mais, aqueles que possuem gostos políticos estão órfãos em terras brasileiras (digo "gosto político" porque aqui não existe algo como "exercício cívico", tendo em vista que podemos resumir tudo a uma questão de gosto).

Aos pobres, deixemos o subterrâneo prazer de transar e se drogar. Quando sentem prazer violentando as outras classes – roubando – aí, nós não podemos permitir. Lugar de bandido é na cadeia! Se a mocinha pobre engravida, aborto é um crime! Devia ser mais responsável, pois na hora de virar os olhos tava tudo bem, agora, depois que engravida quer fugir das consequências!? Aqui me lembro que o discurso contra aborto proporciona uma orgiazinha também! Que coisa maravilhosa é ser moralista sem se comprometer- o néctar dos deuses! O discurso do “sou contra o aborto, pois sou a favor da vida” significa colocar a coroa dos mais elevados valores sem ter que despender um miligrama de comprometimento. Essa é a orgia do moralismo postiço brasileiro em seu ápice, coisa fina. Criança prateada pedindo esmola no metrô pode, dormindo na rua também! Afinal, aí não é mais vida – é pobre.

Creio que vivemos às portas da orgia como mendigos do prazer, pois nos falta o prazer saudável das pequenas coisas. Nos falta entender que valores não são uma questão de gosto e sim de comprometimento. Por isso, nos resta apenas a gramática rasa do prazer, do "não faço porque não gosto", socializar pela articulação infantil de repressão e recompensa. Nesse contexto, não devemos estranhar que o carnaval seja grandioso e tão importante para o brasileiro – é o que nos resta.

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