A culpa e o ódio à vida

Memórias do subsolo - Ilustração da capa

“Sou um homem doente... Um homem mau.” 

Por que nos culpamos? Por que nos culpamos antes de fazer coisas erradas e por que nos culpamos sem saber? Será que isso tem algo a ver com o fato de nos pensarmos ruins, maus e imperfeitos? 

Assisti um filme chamado "O maquinista" onde o personagem principal vivido por Christian Bale definha em todos os aspectos possíveis(física e psicologicamente) e a pergunta que nos fazemos até o último segundo do filme é: Por que? O que levou um rapaz tão normal a se tornar aquele trapo humano? Será que ele fez algo errado e não lembra? Neste momento eu me pergunto... fiz algo errado? E se eu fiz e não me lembro? Será, meu amigo, que vivemos uma vidinha de merda porque na verdade nos achamos dignos disso? Será que não vislumbramos uma vida melhor, horizontes mais audaciosos, pois acreditamos que não merecemos tal alegria? 

Freud pensa a culpa como fruto de uma ambivalência, de um misto de sentimentos despertados pelo momento em que a horda primitiva matou o Pai castrador. Os filhos, possuídos de ódio, assaltam o Pai e o matam, mas depois de ver o sangue derramado, percebem em seus corações um amor que até então estava nublado pelo ódio e destes dois sentimentos juntos surge a culpa. Mais tarde irá articular a culpa com o surgimento do Super-eu e perceberá, com isso, que nossa culpa passa a circular no interior da subjetividade, não precisando mais da realização de um ato "externo" para assombrar a consciência, bastando apenas uma intenção... um pensamento para que a "má consciência" apareça. 

Com o Super-eu acontecerá uma espécie de retorno da agressividade sobre o próprio individuo, sendo que aquela agressividade incompatível com a relação fraterna será direcionada sobre o eu, exercendo um papel de autoridade introjetada na psique e punindo o eu por todas as infrações que ele nem imaginou em cometer, ainda. Quanto mais agressividade o individuo tenha, tão mais cruel e severo será esta autoridade e aqui não existem limites, pois todo sofrimento vem por um "bom motivo", para "nosso bem". Talvez os piores atos que a humanidade cometeu foram os motivados por boas intenções. 

Tente se lembrar das melhores pessoas que você conhece, repare que elas, normalmente, se pensam como pessoas ruins, difíceis, etc. Ser bom não alivia a consciência, muito pelo contrário, nossa renúncia parece alimentar o Super-eu com mais agressividade e por isso nos tornamos mais severos, e as coisas vão ficando feias já que nossa vida moral alcança uma espécie de autonomia, já não precisa do real para incrementar sua dinâmica circular sado-masoquista. Aqui, tudo se passa nos recônditos do subsolo - definhamos destilando uma aura de passividade e sofrimento.

Para Freud, a civilização não pode se desenvolver sem que a culpa se intensifique, pois a sociedade se iniciou por um crime e se consolida pela culpa, se pensasse um slogan, seria "a culpa nos une". Na Bíblia, a existência se inicia com um pecado - a desobediência de Adão e Eva - e tudo começa pela expulsão do paraíso e pelas punições que Deus lança sobre toda criação. Apesar de ninguém acreditar nisso, eu me pergunto: por que acreditamos que o sofrimento nos advém como uma punição? Aquele momento em que Deus diz que a terra produzirá espinhos e que a mulher dará a luz em meio a dores de parto por causa do pecado, existe aqui uma grande virada - o sofrimento se torna a consequência de um pecado. Por isso tendemos a acreditar que sofrer possui uma razão e infringimos dor àqueles que julgamos reprováveis. O Deus hebraico inaugurou uma modalidade até agora imbatível de interpretação do real, pensar a imperfeição e a dor como pecado.

Como acreditar que um cactus, uma plantinha tão gracinha e corajosa, poderia ser desenhada pelo gênio penal de um Deus todo-poderoso? Por que nos dar ao trabalho de acreditar que as dores e as nossas frustrações seriam uma punição? Qual seria a finalidade de reduzir assim toda a multiplicidade multicolorida da vida senão para sujeitar, sob uma vingança subterrânea, todos os seres? Conspurcar tudo com culpa, isolar toda a vida sob o julgo de uma dinâmica inconsciente e autorreferente em prol de uma utopia futura, não seria isso tudo uma puta sacanagem!? Todas as coisas embutidas em nossos melhores ideais nada mais são do que o negativo da vida! Pense... Somos imperfeitos e a cada tentativa de viver e fazer o que gostamos estamos adicionando mais tijolos ao muro de nossas culpas, se não fizemos nada, nos sentiremos culpados por existir, nos restando apenas esperar um futuro(importante lembrar que vive-se no presente) no qual Deus(alguém de "fora") apagará esse rascunho que chamamos vida do mapa, reconstruindo tudo do zero. 

Isso é ou não é muito ódio a vida? Freud pensa a culpa como ambivalência, como um efeito colateral do convívio humano. Eu acredito que a culpa seja uma forma de dobrar a vida, é a expressão de um ódio à vida sentido por um grupo a eras atrás e que agora está a florescer entre nós por um contágio subterrâneo, introjetado não apenas em nossa psiquê, mas em nossa cultura, contaminando os veios de nossa ancestralidade. Esse ódio à vida se perpetua em nosso subsolo..posso ouvir seu sangue palpitando no fundo de meu ser 

      "Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela"          Memórias do Subsolo

     

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