Vamos tirar uma selfie

Imagem tirada do site "All Posters"

"Enquanto muitas pessoas, em países não industrializados, ainda se sentem apreensivas ao ser fotografadas, suspeitando tratar-se de algum tipo de transgressão, um ato de desrespeito, um saque sublimado da personalidade ou da cultura, as pessoas de países industrializados procuram ser fotografadas — sentem que são imagens e que as fotos as tornam reais."
    Susan Sontag - Sobre Fotografia

Queria falar sobre os selfies já a algum tempo, mas não conseguia parar para refletir e destilar ideias. Agora, sentadinho em frente de meu velho note em terras guaratinguetaenses curtindo uma semaninha de folga... vamos tirar o atraso. 

Eu gosto de ver pessoas tirando selfies e reparo na maneira das pessoas de se organizar e sorrir, aquela abaixada para a perspectiva não ser cortada pela cabeça ou um braço esticado em um ângulo que esconda defeitos e valorize um perfil imbatível. Toda movimentação do selfie é uma dialética complicada, pois o fotografo não consegue acompanhar a composição a não ser por "tentativa e erro" e ali se vão milhares de coreografias e olhadas, foto e olhada, sorriso e perfil imbatível e olhada...rs Isso gera uma espécie nova de articulação modelo-foto-fotografo, uma espiral que orbita em torno da expressão perfeita e que poderá ser sacada em situações variadas, já que, uma vez descoberto o perfil-sorriso imbatível, o único trabalho de agora em diante será o de enquadrar o plano de fundo - a cena - que a pessoa deseja anexar ao seu inventário existencial e voilà! Selfie tirado com sucesso.

A pergunta que não quer calar... por que esta pessoa precisa postar uma foto com uma expressão automática com um lugar atras de si? O que acontece na fração de segundo em que a pessoa se encontra lá no lugar incrível até o impulso de sacar o celular e empunha-lo como o He-man clamando pelos poderes de greyskull e aqui poderia incluir os milhares de celulares filmando aquele show super legal, coisa que poderíamos acessar com uma qualidade infinitamente superior pela gravação oficial do show. Tudo bem que exageramos, como reparou o Mick Jagger, mas as vezes o show não tem gravação, ou gostaríamos de registrar algo daquela cena que tornasse aquele momento pessoal e acessível, afinal, é interessante bater com imagens aleatórias no celular, cenas que já havíamos jogado no limbo retornam ali com apenas um click. 

Acontece que andar com câmeras diariamente tem consequências que não conseguimos mensurar numa crítica tipo "viva o momento e tire menos fotos" e a relação entre imagem e real está avançando para outros lugares, mais distantes do que a teoria normalmente coloca como dualidade ser x parecer. O ponto que eu gostaria de enfatizar neste post é o que Susan Sontag  já acenou em sua obra sobre a fotografia, dizendo que as imagens estão nos ajudando a construir uma sensação de realidade que a experiencia não é mais capaz de fornecer. Seguindo essa ideia, penso que o selfie seria uma forma de elaborar uma experiência de si utilizando instantâneos a distância do braço, algo que o testemunho daqueles que nos cercam, ou nossa cultura, não conseguem mais proporcionar. Real e Identidade estão em um processo de elaboração contínuo intermediado pela técnica, neste caso, fotográfica e o que alguns preferem evitar, por possuírem um real pouco flexível ao trânsito, dizendo: sou pouco fotogênico. Outros vão além e pensam poses diferentes, luzes, maquiagens, backlight, ângulos, efeitos, construindo uma imagem de si que possui beleza, exageros sim, porém, tendo em vista vivermos em uma cultura onde os encontros in loco perdem espaço para as interações nas redes sociais, a imagem vem sendo mais relevante que a carcaça que a suporta, assim... no filter é o que? Platonismo para os pobres? 

Aquele sorriso treinado é uma coisa fácil de ser criticada, eu particularmente evito quando fotografo. Mas eu tenho o meu, e acredito que seja algo importante de se usar naquelas fotos registro de encontros e festas, pois a festa passará e suas memórias ficarão como um bagaço de nossa experiência. A câmera criou esse inconveniente: ela registra um flash extremamente eloquente daquele momento. Se tirarmos essa foto espontaneamente, com uma cara de paisagem, ficaremos com uma recordação desencontrada daquele momento. Não que fotos espontâneas não sejam legais, o que acontece é que nossas festas nem sempre são registradas e o que geralmente acontece é aquela pose de recordação.. logo, ponha a mascara de feliz que você treinou em milhões de selfies e dispare! O resultado? Será uma recordação cujo balanço entre a artificialidade-técnica-desgaste do tempo gerará uma imagem com alegria suficiente para fazer jus àquele momento, mesmo após transpassar as décadas. Veja você mesmo aquele cara que nunca sorri nas fotos da galera.. ele estava normal, só que a equação tempo+foto sempre distorcem a impressão que nos fica e acabamos achando ser mal humor o que é, na verdade, um descuido da técnica fotográfica. Enfim, fotografia é uma arte que precisa considerar o tempo. 

O selfie é legal para descobrirmos ângulos, fórmulas de nossa fisionomia, posições que funcionam fotograficamente, no mais, tirar e postar uma miríade de selfies com o mesmo sorriso é um sinal de transfusão fotográfica que usamos tentando dar um up narcísico por vias inadequadas, tendo em vista que uma imagem não é nada além de um trânsito, acabamos girando em falso. Aqui é o ponto em que devemos parar de nos expor e replantar algumas mudas em torno de nossa privacidade, lembrando de que nos vestimos como para um inverno russo quando convidados para uma rodada de strip poker, devíamos ter em mente que toda fotografia é um despir.

"Como todos sabem, pessoas de povos primitivos temem que a câmera roube uma parte de seu ser. Nas suas memórias, publicadas em 1900, ao fim de uma vida muito longa, Nadar conta que Balzac tinha um tipo semelhante de “pavor vago” de ser fotografado. Sua explicação, segundo Nadar, era que todo corpo, em seu estado natural, era feito de uma série de imagens fantasmáticas sobrepostas numa infinidade de camadas, revestidas por películas infinitesimais. [...] Uma vez que o homem nunca foi capaz de criar, ou seja, de fazer algo material a partir de uma aparição, de algo impalpável, ou de fazer um objeto a partir do nada — qualquer operação daguerriana, por conseguinte, havia de se apoderar de uma das camadas do corpo que tinha em foco, destacá-la e usá-la"  Susan Sontag      



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