Ao redor das árvores

Árvore dançando

Quando criança vivia ao redor das árvores. Acredito que isso acontecia porque elas estavam sempre lá...disponíveis. Havia algumas árvores um pouco anti sociais, sem nenhum galho baixo para poder nos apoiar, mas a maioria sempre deixava um galho firme em sua base que permitia aos pequenos o prazer de subi-la. Uma árvore é a própria definição de generosidade, tanto é que sempre quando imagino uma, logo me vem a cabeça frondosos galhos estendidos como braços abertos. 

Subir em uma árvore me ajudava a mudar o olhar, arejando aquele mundo demasiadamente grande do qual as crianças costumam se esconder na barra da saia de suas mães. A escalada nos firma as mãos e nos ensina a enfrentar o frio na barriga, perceber galhos podres, frágeis. Aprendi a confiar, nada me desperta mais confiança que um galho de goiabeira.

Adorava cortar árvores, podava-as quase todo mês - coitadas. Contudo, elas nunca reclamavam. Não sei que zelo jardinístico tomava conta de mim para me fazer subir em árvores com o facão e cortar galhos secos, as vezes brotos, adorava coisas fáceis de cortar pois me fazia crer que era uma espécie de wolverine do quintal. Certa vez tomei uma das facas mais afiadas e fui cortar pano velho, como de costume, e acabei talhando o dedo indicador esquerdo. O sangue escorria generoso e aquilo curiosamente me fazia sentir vivo. Sentia um certo orgulho de sangrar, veja gente como eu sangro bem! Sou quase um adulto. Acredito que as cicatrizes eram o que eu tinha em comum com as árvores, faziam me sentir forte como elas.

Em dias chuvosos, estar no alto de uma mangueira era muito maneiro. Você podia sentir os troncos vergando vagarosamente, embalando seus visitantes. Havia o som esvoaçante das folhas e os sons graves dos ventos rompendo a calmaria do quintal. Tudo esse espetáculo era fruto da combinação maravilhosa entre a pequenez da infância e a grandeza desses majestosos avós verdes. Quando as cortinas fechavam, ouvia gritos da garagem: Paulo desça já daí!

Dentre as numerosas árvores do quintal, havia uma já decrépita, seca e sem galhos. Era um abacateiro velhinho. Um dia tomei coragem, uma espécie de bravura combinada com senso de dever e mais um tantinho de vontade de destruir coisas e chamei meu pai pra perguntar se podia derrubar a pobrezinha. Argumentei que ela estava em péssimo estado, não iria maltratá-la, apenas daria o golpe de misericórdia. Ele disse que tudo bem! Uhuuu No dia seguinte me preparei, afiei o facão e mandei brasa. Lá pelas tantas já estava um pouco arrependido, porque cortar a copa era osso e já estava com bolhas nas mãos. Ia avançando e sentindo um cheiro aveludado de seiva, o sangue da árvore começava a correr e alguns colegas passavam me perguntando o que eu estava fazendo. Eu parava com um ar de alguém que sabia o que estava fazendo e descrevia a empreitada - tô cortando essa árvore porque ela já está velha. Óia que serviço estou prestando para a humanidade!

Após alguns anos voltei à antiga casa e me deparei com uma árvore renascida e cheia de galhos verdes. Essa árvore me ensinou que as vezes precisamos cair, para renascer.  

Em minha época de Canadá aproveitei a chegada da primavera e comecei a ir a pé para a estação de metrô que havia perto da casa em que morava. Um pouco antes da estação eu encontrei uma velha árvore e passei a cumprimenta-la todos os dias. Dizia olá! E a abraçava. Pensava em quantos invernos rigorosos aquela árvore passou, quantas primaveras celebrou? Quando o verão passou, o outono foi muito rápido. Certo dia estava caminhando quando ouvi uma ventania daquelas que passam antes de uma chuva forte. As árvores esvoaçavam e rugiam como uma lamentação, cheguei a sentir uma melancolia no ar. Poucos dias depois as folhas avermelharam e começaram a cair. Então, pude compreender que aquela despedida era a maneira que as árvores tinham de lamentar os longos meses em silêncio que elas teriam que passar até chegar a próxima primavera.

Uma tarde de outono estava retornando do metrô quando vi uma marca laranja na velha árvore e intuí que ela seria cortada antes pelo próximo inverno. Vários amigos tinham partido no final do verão e a minha árvore amiga também estava de partida. Um belo dia, sai da estação e a vi tombada ao lado da rua. Aproveitei para recolher umas folhas de lembrança e me despedi. Tenho a impressão que um dos motivos dessa viagem foi o de encontrar essa árvore e dizer adeus, estando ao seu lado durante seu último verão.

Para mim, as árvores são portais da vida que vigiam este planeta e nos conectam com as marés de energia que atravessam o universo, por isso elas frequentam todos os momentos importantes das grandes religiões. Uma figueira sagrada vigiava o Buda em seu caminho de iluminação. A árvore da vida estava no centro do Éden e a árvore do bem e do mal permitiu ao homem escolher seu destino. Jesus foi suspenso em um cruz de madeira em sua passagem para o céu, enquanto Odin foi pendurado em Yggdrasil por nove dias e nove noites para descobrir os segredos da vida.

Árvores produzem frutos e flores generosamente, perfumam o ar e distribuem cores em forma de pétalas pelo chão da cidade. Mas elas não possuem olhos, nem boca, nem nariz. Isso me faz pensar no mistério da vida, na capacidade estética e generosa de seres que aparente estão alheios as maravilhas que produzem. Imagino... o que as árvores pensam? Será que elas sabem que nós existimos e que destruímos milhares delas todos os dias? Ou será que elas existem em um trajeto silencioso pelo cosmos, tipo uma procissão contemplativa cujo percurso sombreia o caminho da vida? Será que nós também habitamos um plano cuja realidade não temos sentidos para perceber, habitados por outros seres que nos contemplam e apreciam, vendo em nós flores e frutos?

Qual será o meu perfume e a forma de minhas folhas invisíveis?
    

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