Isso aqui é arte?

Daniel Coury/divulgação Pintura de Pedro Moraleida

Isso é arte? Pergunta o vereador Jair DiGregorio durante uma visita filmada pelo próprio e exposta nas redes sociais. Ele diz que foi eleito para proteger a população de Belo Horizonte daquele tipo de coisa. Durante as filmagens, um instrutor do museu se constrange e pergunta se ele entende de arte, ou seja, se ele sabe do que se trata aquela exposição, mas o vereador diz que não precisa provar os seus conhecimentos artísticos e quer provar que aquilo ali não é arte. Pergunta enquanto filma quadros da exposição de Pedro Moraleida: isso aqui é arte?    

Acho interessante esse movimento de políticos que defendem a família, celular em punho, protestando dentro de um museu contra a arte degenerada. "Contra a pedofilia, pornografia, etc..." são normalmente as palavras de ordem. Existe nesse movimento uma coisa de libertação - um desabafo - creio. Por quê? Acredito que toda alta cultura e todo o mundo acadêmico geralmente se contrapôs ao senso comum, isso desde Platão e sua aversão à doxa (opinião). Era comum começar os debates por uma opinião e ir destrinchando até chegar ao ponto em que incauto cidadão se sentia ridículo, justamente por ter defendido aquela ideia. A partir dos diálogos de Platão, ficou difícil conversar apenas com base nas opiniões. Toda opinião virou um tipo de preconceito embrulhado no senso comum, uma ideia "pra viagem". 

O Povão se viu excluído de um espaço de verdade, suas afirmações se tornaram superficiais, enquanto outros ambientes cultivaram gostos e verdades mais "profundas e verdadeiras". Vemos aqui uma cisão entre baixa e alta cultura ganhando proporções. Senti nesses movimentos de crítica da "arte degenerada" uma tendência de identificar uma alta cultura com um pensamento de esquerda, aglutinando todo o império do mal desconstrutivista sob a bandeira do comunismo. Assim, invadir o museu foi algo como a tomada da bastilha. Algo do tipo, ok isso aqui está no museu e é algo super sofisticado, mas foda-se, tem coisas pornográficas e crianças no ambiente, logo, é pedofilia e isso nem a alta cultura pode desconstruir. É errado... ufa! Finalmente achamos algo que podemos dizer: isso não caralho! 

Nesse contexto vi um debate entre o artista Nuno Ramos, no "Entre Aspas", com Eduardo Wolf do blog Estado da Arte e percebi que ele se descabelou quando seu opositor lembrou de uma exposição do Itaú fechada pelo movimento negro, onde alegou-se racismo. Eduardo Wolf pediu "seis" e lembrou desse caso, para logo em seguida dizer o orgásmico - "você é um hipócrita". Nuno Ramos escorregou na oposição doxa-verdade quando disse que o pedido do movimento negro era legítimo enquanto o dos apoiadores do MBL não era, no caso do museu Queer. Foi chamado de "esquerdista" em praticamente todos os comentários que vi desta matéria por dizer que o movimento dos negros é legítimo, enquanto o movimento pela "família e os bons costumes" não. Isso porque até hoje a família era um lugar comum, era a doxa, estava lá como um fundamento que barbarizava geral e apenas os setores "de sempre" se posicionavam criticamente. Havia a "guerra de todos contra todos e o mundo estava em perfeita paz" como disse Rousseau, afinal, não aconteciam mudanças significativas. Meninos afeminados, os queers, negros, tudo que saia do "familiar" sempre sofreu discriminação e tudo corria bem para a família brasileira, agora que a família está realmente escorrendo pelo ralo precisamos urgentemente de figuras que preencham as lacunas e confiram uma inteligibilidade ao que está acontecendo. 

A massa está derretendo como as geleiras do ártico e ela precisa de algo para se agarrar. A massa sempre foi hipócrita, mas isso nunca foi um problema, agora ela precisa reconhecer que a água está "às nádegas". Dizer que toda essa "desconstrução" é culpa da esquerda é flertar com uma perspectiva paranoica que enxerga a história em 16 bits. A "crise" é o tema neste início de milênio. Amo pensar a crise da contemporaneidade, mas dá muito trabalho fazer isso. A maioria dos livros tem referências bibliográficas infinitas, temos que ler muito, discutir, refletir, nos desalojar de muitas certezas. Mas as pessoas não tem tempo para perder com essas intelectualices das humanas, por isso o MBL com sua filosofia dos memes vem a calhar. Chamemos toda essa maçaroca de "pedofilia, pornografia, esquerdismo, etc" e pronto.  

"O ser humano tornou-se, por assim dizer, uma espécie de deus protético, realmente admirável... Épocas futuras trarão novos, inimagináveis progressos nesse âmbito da cultura, aumentarão mais ainda a semelhança com Deus. Mas não devemos esquecer, no interesse de nossa investigação, que o homem de hoje não se sente feliz com esta semelhança." Freud

A família brasileira não aguenta mais a crítica. Antigamente, as minorias extraiam uma felicidade rarefeita de chamar a sociedade de hipócrita, agora a mesma sociedade é como um banco que quebrou, cobrando suas dívidas... reivindica as migalhas que antes caiam de sua mesa. Quer chamar as minorias de hipócritas.. faz sentido. Chegamos ao tempo em que a maioria se tornou uma minoria e a doxa bate à porta do banquete da verdade. A conta chegou.

"Nisso a cultura se comporta, em relação à sexualidade, como uma tribo ou uma camada da população que submeteu uma outra à sua exploração... Psicologicamente se justifica que ela comece por desaprovar as manifestações da vida sexual infantil, pois não há perspectiva de represar o desejo sexual dos adultos sem um trabalho preparatório na infância. De modo algum se justifica, porém, que a sociedade civilizada tenha chegado ao ponto de também negar esses fenômenos facilmente comprováveis, evidentes até. " Freud

Clamar contra a arte pela defesa das crianças é algo que está se tornando uma última prova de moralidade, tipo uma folga, um raro momento em que o cidadão pode se sentir virtuoso. Políticos bradam em seus discursos inflamados, pessoas protestam nas entradas dos museus... contra a pedofilia!! Já tinha me esquecido do peladão do MAM, inclusive. Os vereadores dizem que estamos sexualizando as crianças e destruindo sua inocência. Bom, acredito que quem lida com crianças sabe que elas são seres sexualizados e que isso não é, em si, problema nenhum. O problema está no abuso, e no uso que o adulto faz dessa sexualidade inocente, germinal. Creio que a pedofilia prospera em ambientes onde a sexualidade é vista com mal olhos, vide os escândalos da santa Igreja. Usar a repressão como uma alavanca moral empurra adultos para comportamentos abusivos de todos os tipos e tratar disso implica um certo esforço de enfrentamento e  diálogo. Não acredito que devemos expor as crianças ao sexo para educa-las, e os museus não estão fazendo isso. Fico pensando no que os clubes naturistas estão pensando sobre esses protestos todos, será que eles se sentem meio pedófilos agora?

Tocar um homem nu se torna necessariamente um abuso aos olhos de quem nunca fruiu o corpo nu para além da relação sexual e combater a pedofilia não significa combater a sexualidade. Será que tornar a nudez algo perigoso - um tabu - vai proteger a criança contra o abuso? Quais seriam os impactos disso na vida sexual adulta? Creio que estaremos no escuro enquanto não compreendermos os adultos pedófilos e que preparar as crianças para resistir ao abuso está mais relacionado um anseio dos pais de que seus filhos se tornem "a prova de abusos", do que com o combate a pedofilia "em si". É interessante notar como nossas inseguranças não ajudam a proteger as crianças de situações de abuso, que eles acontecem diariamente e que os membros da família resistem até o fim para denunciar abusadores. Contudo, o escândalo da pedofilia é atraente e mobilizador, sendo utilizada como peça de artilharia contra os "esquerdistas" da arte. A pedofilia está sendo usada como termo para legitimar ações de alguns setores da sociedade contra o que entendem ser as fileiras do demônio do relativismo. Existe um desconforto geral - dos mortais, das donas Reginas - diante de um futuro incerto, de uma crise que não conseguimos explicar. Ficamos num clima de "precisamos fazer alguma coisa!" que facilita a ignição de manobras MBListicas e sua filosofia dos "memes".

"A escolha de objeto do indivíduo sexualmente maduro é reduzida ao sexo oposto, a maioria das satisfações extragenitais é interditada como perversão. A exigência, expressa em tais proibições, de uma vida sexual uniforme para todos, ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, priva um número considerável deles do prazer sexual e se torna, assim, a fonte de grave injustiça."

As pessoas que criticam a arte pelo conteúdo sexual de suas obras, ou performances, estão atirando contra o próprio pé, pois o que está em questão é o esgotamento do sistema, a ausência de prazer na vida, a restrição da fruição a determinadas práticas e condições que se encontram cada vez mais rarefeitas para maioria da população. A pobreza da fruição das coisas é uma crise de todos nós e a arte está ai para ajudar, para abrir caminhos e novas formas de desfrutar a vida, para além da masturbação do consumo (do corpo e do sexo - inclusive).

Antigamente, dizer que não podíamos curtir de tudo porque era pecado servia. Hoje, precisamos dizer que é pedofilia. Faz sentido? Acho que não precisa mais fazer sentido né?

Obs: Vi o tal video do Vereador DiGregorio onde ele aparece interpelando uma professora e seus alunos inocentemente, "o que vocês estavam fazendo?". Quando a professora responde, a filmagem corta e segue uma série de protestos e quadros "obscenos" ligando a cena da professora com seus alunos aos quadros. Pesquisando um pouco vi que a professora protestou contra o uso da sua imagem e de seus alunos fora do contexto (ela estava em um show de curtas, não na exposição), e que essas imagens foram retiradas, mas "continuam circulando nas redes sociais". O video tinha mais de um milhão de acessos e milhares de compartilhamentos.

Lá pelas tantas o Vereador pergunta: esse quadro é daquele artista que se matou? Suicida pode ser a nova senha para desqualificar algo, quando a moda da pedofilia passar.  

Aqui vai o link do video:https://youtu.be/9DNcFm0DxXw

Link com uma edição do Intercept sobre o debate sobre exposições em museus numa audiência na Comissão de Segurança Publica e Combate ao Crime Organizado: https://interc.pt/2hOexhd (Ver esses políticos gritando pelo fechamento das exposições me faz pensar no quanto a repressão ajuda as pessoas a se tornarem adultos responsáveis e virtuosos)

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