O medo e a barganha

Escher - 1948


- O que você faria se fosse traído? Se descobrisse, lá pelas tantas, que a o seu parceiro está se relacionando com outra pessoa?
- Você tá doido!? Nossa! Ficaria puto, terminaria, mataria, jogaria coisas pela janela...
- Você já foi traído? 
- Não.
- Como você sabe?
- (um sorriso de touché) Porque nunca namorei.
- Então, por que fala com raiva quando pensa na possibilidade da traição? Como sabe o que sentiria se nunca foi traído? Por que raiva e não espanto, angústia ou medo? Como ter tanta certeza do que sentir, sem nunca ter passado por essa situação?

As pessoas falam de seus afetos como se eles surgissem espontaneamente de nosso corpo - como se fossemos a origem dos afetos. Isso me faz lembrar de quando eu sinto medo, medo de que algo dê errado, de perder um amigo, de fazer uma besteira, etc. Quando sinto medo já estou sofrendo a perda, a tragédia e a besteira feita, assim como o náufrago que abraça o medo da morte acaba por encontra-la, o medo é a experiência que se apresenta para além do que entendemos como sequencia temporal, ou linearidade dos fatos. Sócrates dizia que não fazia sentido temer a morte, pois ela era desconhecida; gostaria de pensar se o medo que sentimos não seria um indício de coisas ruins que já vivenciamos, seja a morte, perdas ou violência.  

Assisti um filme na "tela quente" essa semana, coisa que não fazia a muito tempo. O filme que passou foi o "amor a toda prova", e quando assisto filmes com o Steve Carrell já me preparo para sensações intensas de vergonha alheia, onde a combinação entre o ridículo e o amor são exploradas até o limite. Vários personagens desengonçados desfilam ao lado do amante profissional interpretado por Ryan Gosling e isso nos acalma de certa forma, pois o filme indica que é possível aprender técnicas para amar sem ser ridículo, para surfar no mar dos afetos sem ser atropelado pelas ondas. Os pontos que acho mais legais são as cenas em que os personagens hesitam, trepidam, planejam formas de se declarar e de conquistar as pessoas amadas, fracassando epicamente. Que medo intenso é esse que acompanha o amor? 

Quem é adolescente e está dando os primeiros passos no amor deveria, pela "lógica", ser o mais destemido, afinal seu coração ainda está intacto... nunca tomou um fora. Mas quem já foi adolescente sabe que não é assim. É justamente o contrário, quanto mais "foras" tomamos, menos medo sentimos. Nosso corpo afetivo precisa espraiar de tempos em tempos e o medo se apresenta como uma pele que precisa ser trocada conforme crescemos. O medo é a consolidação de períodos geológicos de nossa afetividade, de quando vivemos perdas, rejeições e mortes em nossos primórdios. O que não significa que vivemos essas coisas umas décadas atrás, o tempo afetivo não é linear. Diria que os relatos do inicio do universo são sempre uma reedição de nosso próprio inicio e quando dizemos bilhões de anos, estamos falando da época em que tomávamos coca cola de garrafa de vidro e escorregávamos na garagem de cimento queimado. Quando aconteceu o big bang? Com certeza foi depois de quando minha mãe costumava assistir a Silvia Poppovic na band.

Sentir medo é reviver o que se apresenta diante de nós.

Quando pergunto porque você sente medo, as pessoas normalmente respondem: porque não quero ouvir um não, não quero morrer, ser violentada, etc. Logo em seguida, lembro que durante o período em que a pessoa está com medo ela já está sofrendo as consequências da rejeição, da morte e da violência... ela já não dorme direito, não sai de casa, usa alguma droga abusivamente, tudo isso já é a atualização do que ela pretende evitar ouvindo os apelos de seu medo. Quando misturamos o pensamento lógico causal com os afetos criamos uma ilusão aprisionadora que nos fixa em um estado de sofrimento constante. Esta barganha perversa se apresenta como uma "troca" entre controle racional, e uma possível rota de fuga de nossas tragédias pessoais - que já aconteceram. A dura lição é que não existe barganha racional com os afetos e não existe crescimento sem que se rompa o medo, para dar a ele novas dimensões.
    
Quando nos aproximamos de nossos medos e não fugimos, percebemos que sobrevivemos para além de todas os possíveis reveses que a vida pode nos proporcionar. Mas aqui me pergunto: quantas vezes seremos vis, quantas vezes nos desviaremos da possibilidade do soco antes de aprender que somos parte dessa vida generosa? Não seria isso o percurso de nossas vidas, um constante desviar-se?   

Ainda que soframos quantidades cavalares de medo, que o aquecimento global ferva nossos mares e destruamos toda nossa fauna para fazer big macs... perceberemos, ao fim, que a vida é soberana e gosta de nos sacudir na beira do abismo.  

E se morrermos? hahaha



 

Comentários

  1. E se voarmos?

    Penso que o medo não acompanha o amor. É o medo o contrário do amor. Acreditando nisso, romper o medo é se lançar em amor.

    E a magnitude do amor, quando nos toma, nos causa espanto porque nos tira de nós, muda nosso centro. Nos faz sim voar. E é bom sair de si em elevação contínua, se melhorando na troca amorosa entre os penhascos da vida.

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