A moralidade vale a pena?



Aqui estamos nós encerrando mais um ano. 2017, assim como 2016, não foi um ano muito amigável. Foi um ano que tirou pedaços, ferindo de morte algumas ilusões, não nos deu tempo de puxar um fôlego. O ano exigiu que despertássemos novas forças, nos obrigou a tomar uma atitude diante da vida... percebemos, desolados, que as escolhas estão acabando. Gostaria de falar aqui sobre algumas experiências que me marcaram nestes últimos dias de 2017.

Alguma semanas atrás eu terminei meu curso de psicanalise e quando cheguei em casa a vizinha, uma senhora normalmente simpática, estava nervosa e disse que tinha uma má notícia para mim. Várias casas tinham sido roubadas, incluindo a minha. Encontrei minhas coisas reviradas e percebi que todos os eletrônicos haviam sido levados. O roubo aconteceu momentos depois que escrevi meu último post. Os ladrões estavam aguardando minha ausência e entraram logo em seguida, arrombando três casas e, pra variar, ninguém viu nada e ninguém colaborou com nada. Percebi desde o inicio um um aroma de resignação em todos os comentários que ouvi da vizinhança e dos policiais. Segui minha peregrinação até a delegacia mais próxima e depois de duas tentativas frustradas, consegui me transformar em estatística.

Uma cena me veio à cabeça: os ladrões chegando com as malas cheias de quinquilharias em seu covil comemorando, apresentando os produtos de mais uma operação bem sucedida ao seu líder. Nesse momento ele, um homem mau encarado e velho, olha horrorizado para minha mala de academia e grita: seus idiotas! Vocês roubaram o Paulo! Devolvam isso imediatamente seus imbecis!! Lamentei profundamente não ser um agente secreto desmemoriado, ou um matador da cia aposentado louco para recolocar em prática minhas habilidades mortíferas adormecidas pela vida pacata de estudante de psicanalise. 

Poderia descrever todos aqueles detalhes sórdidos da burocracia, as fisionomias impermeabilizadas pelos rosários da tragédia alheia e a falta de estrutura do atendimento público, mas o ponto aqui é outro, creio. Tentei ouvir as pessoas ao meu redor. Elas diziam que esses ladrões deveriam morrer, enquanto os policiais disseram que ninguém vê ladrões, mas quando policiais fazem coisas erradas sempre aparece alguém para denunciar. Quando eu pedi as filmagens para uma vizinha simpática, ela disse que a polícia não iria usar as imagens e que não iria adiantar nada. E daí? Perguntei-me olhando para ela, por que precisa adiantar? Por que precisamos de argumentos para fazer a coisa certa? E se roubar valer a pena, vamos roubar? Por que (meu Deus) ela tinha quatro câmeras na frente da casa se elas não servem pra nada? Sorri e me despedi, agradecendo pela atenção.

As pessoas conseguem se revoltar e se resignar na mesma frase.

É difícil perceber que valores não seguem um cálculo de interesse utilitário e pragmático. Um bom exemplo de que isso é uma estupidez é a velha didática moral de incentivar as pessoas a serem boas prometendo-lhes benefícios, tipo o céu, um emprego, aceitação... Olhando com mais cuidado, percebemos que isso não tem nada que ver com moralidade e que tão logo o cenário mude, as pessoas despencam na criminalidade e na corrupção, isto é, quando misturamos um cálculo de ganhos com moralidade, no final nos resta apenas o cálculo. Por isso nos enraivecer pela corrupção é um último espasmo do que resta de moralidade, algo como os últimos movimentos de um corpo já abandonado pela vida. 

"Ainda não nasceu o homem capaz de dizer aos seus discípulos: roubem, matem e sejam lascivos... "
 - Trecho de O homem sem qualidades

Ouvindo tal mestre não seríamos impelidos irresistivelmente a sermos virtuosos, por rebeldia?

Existe uma história budista de um mestre que manda seus discípulos roubarem a vila próxima ao templo, dizendo que eles deveriam fazer isso com a condição de não serem vistos. Os discípulos estranham, mas saem no meio da noite para cumprir a ordem do mestre. Apenas um discípulo fica na sala, e o mestre lhe pergunta: por que você não saiu ainda? Ele diz que ele não conseguiria cumprir a missão, pois não conseguiria deixar de se ver. Quando dizemos que uma pessoa boa é aquela que faz o bem quando não existem testemunhas, estamos ignorando que nós somos as últimas testemunhas de nós mesmos.

Na série "God" do Netflix, Morgan Freeman entrevista um pesquisador neozelandês que estuda a origem do mal no comportamento humano. Em um experimento com crianças de seis anos, ele monta dois grupos, sendo que no primeiro ele passa uma tarefa que as crianças deveriam fazer sozinhas e no segundo ele diz que uma "fada"invisível, ou algo do tipo, estaria ali na sala olhando a atividade. Acompanhando a experiência por uma câmera escondida, vemos o primeiro grupo roubar descaradamente enquanto no segundo todos seguem as regras, inclusive chegam até a conversar com a fada. Assim, me parece que nossa capacidade moral não tem nada que ver com recompensas, mas com nossa capacidade de sermos os outros de nós mesmos. Morgan Freeman não deixa isso claro, ficando num discurso de que podemos ser bons e que isso é uma escolha. Aquele papo de livre arbítrio que cheira religião e parece estar em primeiro plano quando falamos do mal. O ponto que escapou aqui foi a percepção de que a alteridade é o princípio da religião e de qualquer moralidade possível.

Perceber que Deus nos habita é entender que o outro não está fora e que só é possível nos relacionar com outras pessoas porque conseguimos conversar com nós mesmos.

Lembro-me de quando rezava todos os dias em minha infância. Uma Ave Maria, um Pai Nosso e um Santo Anjo, rezava bem rapidinho e dormia. Agora, fico conversando comigo quando deito na cama e volta e meia me pergunto: com que eu estou falando?



    

     

  

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