Te pego lá fora

Cena do clássico da sessão da tarde

Minhas primeiras lembranças da vida se compõem de brigas ferozes com outras crianças. Lembro-me de uma roda em que eu estava no centro distribuindo socos com outro garoto e ele me acertava um soco no olho. Nesse momento eu saia correndo e ia para casa, minha mãe trazia água com açúcar para me acalmar, me xingava e dizia que eu tinha que parar de brigar. 

Em outra lembrança eu estava brincando na varanda de casa e a coisa de repente virava um briga, e como eu andava com garotos mais velhos a coisa não saia bem. Nessa briga eu mordi a cabeça do vizinho com tanta força que entrei em casa com um tufo de cabelos na boca. Nessa época eu costumava tomar uns tapas na cara, pesadas nas costas, ser derrubado, pedradas. Eu tento me lembrar de alguma violência que eu tenha deliberadamente causado e me lembro de brigas que tinha com minha irmã e prima, acertei uma pedrada na vizinha aleatoriamente, socava uns na boca do estômago, jogava gatos na cerca viva. Minha infância me parece o que os filósofos chamam de Estado de Natureza e frequentemente aconteciam duelos de vida ou morte como num episodio do Nat Geo. 

Na escola tinha um lance de brincar de pega a pega que eu adorava, porque eu gostava de correr e normalmente era o último a ser pego na brincadeira. Quando eles conseguiam me pegar, todos se jogavam em cima de mim, tipo rugby, sei lá. Um belo dia, todos se jogaram em cima de mim e eu, pressionado pelo sufoco, acabei mordendo uma mão que estava dando bobeira na confusão. Assim, acabei indo pra diretoria num dos primeiros dias de escola. 

Havia aquele lance do te pego lá fora, isso dava um frio na barriga. As pessoas falavam: fulano quer te pegar - fica esperto. As horas passavam devagar e sentia muito medo. Lembrando disso agora me faz constatar que as crianças me pareciam mais adultas que os adultos que atualmente conheço. Faziam apostas, tinham favoritos e alguns eram eleitos para entreter os mais fortes, apanhavam com frequência. Na saída da escola, eu e meus amigos brincávamos de corrida pra ver quem chegava primeiro num poste próximo da escola. Todos os dias, ao toque do sinal, saíamos correndo como loucos para chegar primeiro. Certo dia encontramos um amigo andando e não entendemos, quando nos aproximamos vimos que ele estava com a camiseta rasgada e o rosto vermelho. Eu sabia que ele não era querido na sala e ele acabou mudando de escola. A coisa não tinha escapatória, você tinha que passar pela saída de qualquer jeito e lá o destino te encontrava. De minha parte, achava a pancadaria muito simples, era só fechar o olho e socar, chutar, até algo acontecer - apanhar ou bater. Mas a espera era terrível e quando o implicante era mais forte, bom, a coisa ficava feia. Nesses casos era autorizado o pedido de ajuda, seja dos amigos ou dos pais. 

Lembro-me de um causo que aconteceu no intervalo das aulas. Durante uma discussão o mais fraco subiu numa árvore e o provocador ficou embaixo chamando para a briga, foi quando o amigo do mais fraco intercedeu e disse o famoso: "se quer bater nele vai ter que bater em mim primeiro". "A coisa não é com você" disse o provocador já menos exaltado, deixando o negócio pra depois. Isso, é claro, sempre seria lembrado para sacanear o provocador. A vida costuma nos brindar com revezes interessantes de vez em quando. 

As coisas começaram a mudar para mim quando conversei com minha vó e ela me disse que o diabo estava querendo me pegar. Tinha contado uma história de quando quase tinha caído de bicicleta e ela aproveitou a deixa para me dizer que o diabo estava lá querendo me derrubar e que eu deveria me comportar mais, senão ele iria me pegar. Essa inversão melancólica me tornou mais cristão e menos Estado de Natureza. Na sétima série o pessoal da oitava costumava encher o saco, coisa que o pessoal da minha turma nunca fez. Para exemplificar contarei duas histórias. Depois da aula costumávamos ficar num ginásio esperando caronas e um rapaz desceu da bicicleta e chamou um amigo pra brigar, vários socos depois o provocador apanhou e foi embora. Em outra ocasião, estava descendo as escadas e um garoto cuspiu em mim, ou algo assim, e eu parei e fiquei olhando nos olhos do rapaz. Ele ria compulsivamente e saiu andando como se nada tivesse acontecido. Quando minha turma chegou na oitava, creio que as coisas foram muito melhores para as outras series, não havia essa babaquice programática e estávamos todos ouvindo Legião Urbana e Cramberries - nos preocupávamos menos em encher o saco dos outros e tentávamos ser felizes, curtindo o momento.     

Atualmente existem muitos "te pego lá fora" por aí e estamos todos com medo do que vai acontecer. O problema é que medo justifica tudo, inclusive a violência. 

Tenho a impressão que estou na sétima série de novo e preciso aturar uma geração que acredita que precisa ser babaca porque está no topo - na oitava série. Todos os poderosos da vez me parecem compulsivamente babacas, arrogantes, determinando "intervenções militares", "soluções finais", etc. As empresas parecem deixar nas entrelinhas o "senão você será demitido" para que seus funcionários se submetam às mais humilhantes condições de trabalho e instituições aparentemente bacanas usam seu poder para fazer barbaridades, por ex. Facebook mercantilizando nossa privacidade, ou bilionários patrocinando orgias. Todo o poder se reveste de uma babaquice meio que obrigatória, poder e abuso se tornaram palavras sinônimas.

"O suave e o fraco vencem o rígido e o forte 
 Os peixes não podem separar-se do lago 
 O reino que tem o instrumento afiado 
 Não pode colocá-lo à vista do homem"   Tao Te King verso 36

Esse é um dos meus versos favoritos do Lao Tsé e na tradução do Wilhelm é um pouco diferente e já vi outras versões diferentes, mas o que eu percebo nesses versos é a ideia de que a violência não é a manifestação do poder. Na psicanálise, o pai que espanca seu filho só o faz porque perdeu sua autoridade, a criança briga porque esgotou seus recursos(que são poucos), ela certamente gostaria de estar fazendo outra coisa. Assim, acredito que a violência é uma deterioração da relação interpessoal, a manifestação de uma sociedade em decomposição.

Em um outra tradução desse verso Lao Tsé diz que o grande peixe habita o fundo do lago, essa afirmação se combina com a prescrição de que um governo não deve revelar suas armas aos seus súditos. Ele parece dizer que o poder está sempre ao lado da discrição, assim, toda a violência que nos cerca indica que o poder está se deteriorando, assim como a política. Nesse sentido, creio que Lao Tsé discorda de Foucault e sua sociedade disciplinar, onde o poder se infiltra e dissimula nos poros de uma sociedade normalizada, para afirmar que o poder habita o "fundo do lago". Em outras palavras, a ausência do poder combina mais com uma sociedade cercada pela violência.

Conversando sobre como educar crianças com meu pai, ele dizia que devemos corrigir as crianças para que elas pudessem respeitar as regras de convivência. Eu pergunto: se a criança obedece por medo de apanhar, ela está sendo moral? 

Todos os adultos foram crianças um dia. O que sentia quando descobria que ia apanhar? O que sentia quando via pessoas apanhando ao seu redor? Agora, o que você sente quando ouve o SENÃO daquela figura que está acima de você? Quando vê milhares caindo na miséria e no desemprego, o que você sente? Não percebe seu coração infantil batendo forte? 

O tempo está passando, o sinal tocou... quando vamos passar pela saída?

  

    


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria