A intolerância e nossa hábil covardia

Sonny Liston vs Floyd Patterson
*"Não é uma sensação ruim quando você é nocauteado, ele disse. É, na verdade, uma sensação boa. Não é doloroso, apenas um agudo atordoamento. Você não vê anjos ou estrelas; você está numa nuvem de prazer. Depois que Liston me acertou em Nevada, eu senti, durante quatro ou cinco segundos, que todos na arena estavam no ringue comigo, reunidos ao meu redor como uma família, você sente um carinho por todas as pessoas na arena depois de ser nocauteado. Você se sente amado por todas as pessoas. Você anseia por tocar e beijar todas as pessoas - homens e mulheres - e depois da luta com Liston, alguém me disse que eu realmente mandei um beijo para a multidão do ringue. Eu não me lembro disso. Mas eu acredito que seja verdade porque era dessa maneira que eu estava me sentindo durante quatro ou cinco segundos depois do nocaute..."  

Este é o relato do boxeador Floyd Patterson em uma historia escrita por Gay Talese chamada "The loser", publicada na Esquire Magazine em março de 1964. Esta era uma matéria inusitada porque expunha a perspectiva do derrotado, não do vitorioso, como era de se esperar. O inesperado não para na atitude do jornalista esportivo e contagia a narrativa do boxeador, revelando um nocaute que se assemelhava a uma experiência quase religiosa, algo como uma redenção ou uma reconexão com o mundo.

Este estranho relato me vem a cabeça neste momento para refletir sobre o fracasso e de como ele pode ser um portal para entrarmos em um mundo mais tolerante.

Ontem, vi uma reportagem comentando que a intolerância está aumentando e o Brasil se encontra em sétimo lugar em um ranking de 27 países. Diferenças políticas e econômicas estão entre os principais motivos dos "rachas" e todas essas diferenças explodem nas redes sociais, destruindo amizades e grupos familiares. As novas tecnologias parecem não mais unir seus usuários, isolando-os em bolhas de timelines gerenciadas para comunicar pessoas que pensam parecido, excluindo os desafetos.

Isso me faz pensar no que temos em mente quando publicamos uma opinião nas redes sociais, teríamos a disposição para mudar de ideia? Estaríamos dispostos a mudar de opinião em caso de recebermos bons contra-argumentos? No caso de estarmos equivocados, ser hostilizado iria conseguir mudar nosso ponto de vista? Se eu vejo um conhecido propagar ideias equivocadas e hostilizá-lo, iria ele mudar de opinião por conta disso?

Acredito que a maioria das questões será respondida com um sonoro "não". Pois quando hostilizamos alguém ou recebemos comentários violentos costumamos nos fixar em nosso ponto de vista. Sendo assim, como mudar de opinião? Você já viu alguém mudar de opinião em meio a uma discussão? Se não rolar uma briga já é uma conversa de alto nível, agora mudar de ideia eu acredito que seja algo da ordem do religioso. Aqui retornamos ao início do post, pois acredito que mudar de ideia seja algo que apenas pessoas que já foram nocauteadas podem fazer. Pessoas que nunca beijaram a lona não conseguem mudar de opinião. 

Aqueles que estão imersos na raiva não conseguem mudar enquanto não forem derrubadas, isso porque a raiva não enxerga argumentos, ela reage apenas à força. Descolar de nossa raiva é um trabalho épico que normalmente não conseguimos realizar sozinhos, precisamos de um Liston para nos ajudar. A vida frequentemente nos propõe "lutas", situações em que podemos nos expor, amar, lutar por algo que queremos. Nessas ocasiões podemos nos machucar bastante, mas são as únicas oportunidades de nos tornar mais flexíveis.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


Continuarmos invictos na vida é a chave para a completa solidão. Nossa raiva e orgulho não são coisas fáceis de nocautear, fontes inesgotáveis de conflitos e violência. Isso me lembra de filmes que costumava assistir em minha infância, tipo desejo de matar, duro de matar, comando para matar, etc. Onde os protagonistas sofrem algo horrível no começo, se preparam(armam) loucamente para descarregar toda a fúria sobre seus inimigos no final. O que eu considero enganoso é que os finais vitoriosos nos sugerem que a paz volta para a vida dos protagonistas tão logo eles eliminem os inimigos. Na verdade, quem vence nesses filmes é a raiva.

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco; 

As vezes nossas habilidades nos enganam, nossa inteligência nos fornece uma quantidade infinita de argumentos e vamos ficando esquivos e difíceis de ser pegos. Acontece que nossas vilezas também acabam ficando bem espertas e sorrateiras, nossa raiva vai ficando invencível quanto mais habilidades vamos juntando ao nosso arsenal. Como escapar de nossa hábil covardia?   
   
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Poesia em linha reta - Fernando Pessoa

A tolerância é uma virtude humana, não de semideuses. Parte importante de nossa tarefa seria abraçar um evangelho não da redenção, mas da queda. Lidar com a raiva significa ser abatido, nunca vamos abrir mão dela espontaneamente, ou razoavelmente. Cultivemos um bocado de inépcia e não deixemos de subir ao ringue. Depois de comermos poeira nossa raiva estará mais mansa, mais humana. A tão saudável tolerância está na altura do chão.

Sempre teremos razões para odiar, sempre existirão diferenças, a pergunta que eu deixo é:
quando vamos beijar a lona?

"It's easy to do anything in victory. It's in defeat that a man reveals himself."
Floyd Patterson

Link bacana sobre o tema "fracasso" encontrei nesse artigo chamado The art of failure:
http://academics.wellesley.edu/Polisci/Han/Pol199/Syllabus/Gladwell-ChokingPanic.pdf

*"It is not a bad feeling when you're knocked out," he said. "It's a good feeling, actually. It's not painful, just a sharp grogginess. You don't see angels or stars; you're on a pleasant cloud. After Liston hit me in Nevada, I felt, for about four or five seconds, that everybody in the arena was actually in the ring with me, circled around me like a family, and you feel warmth toward all the people in the arena after you're knocked out. You feel lovable to all the people. And you want to reach out and kiss everybody—men and women—and after the Liston fight, somebody told me I actually blew a kiss to the crowd from the ring. I don't remember that. But I guess it's true because that's the way you feel during the four or five seconds after a knockout. . . .

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