A Fortuna como divisor de águas

A Fortuna - Tadeusz Kuntze

Revirando a biblioteca do quartinho de estudos do meu pai, acabei encontrando uma versão elegante da Cidade de Deus de Agostinho. Contra capa contendo informações variadas, capa dura com um símbolo misterioso, sem enunciados. Livros antigos possuem na tradução uma história tão interessante quanto o conteúdo em si e depois de ler as notas do tradutor, parti para os infinitos capítulos sobre como os romanos tinham vários deuses e como isso não fazia sentido nenhum, se comparado com o Deus único do cristianismo.

No meio dos divertidos relatos sobre a história de Roma, o capítulo sobre a Fortuna me chamou atenção. Achei o destrinchamento da reverência irracional da deusa um espetáculo. O capítulo em questão é o 18 do livro IV, cujo título é: Como é que distinguem a Felicidade da Fortuna os que as consideram como deusas?

"A Fortuna, essa, pode ser má; mas a Felicidade, se for má, já não será Felicidade."
(...)
"Mas então como é que a deusa Fortuna é ora boa e má? Acaso será que, quando é má, deixa de ser deusa e se converte num demônio maligno? Quantas são então estas deusas? Tantas, com certeza, quantos os homens afortunados, isto é, de boa fortuna. Mas, como são muitos simultaneamente, isto é, ao mesmo tempo, os de má fortuna, se ela é sempre a mesma, então é ela boa e má - boa para uns e má para outros? Será sempre boa a que é deusa? Então confunde-se com a Felicidade. Porque se empregam então diferentes nomes? Tal é de admitir, pois é costume ter uma só coisa diferentes nomes. Mas para quê templos distintos, altares distintos e distinto culto? Há uma razão, dizem: é que a felicidade é a que os bons conseguem pelos seus méritos adquiridos; mas a fortuna, a quem se chama boa, acontece fortuitamente, sem consideração pelos seus méritos, a todos os homens - bons e maus. Por isso é que se chama Fortuna. Mas como pode ser boa a que, sem discernimento, favorece bons e maus? Para que venerar então a que é de tal modo cega que cai ao acaso sobre qualquer um - preterindo o mais das vezes os seus adoradores e favorecendo os que a desprezam? Ou então, se os seus adoradores conseguem que por ela sejam notados e amados, será que ela então se deixará guiar pelos méritos e não favorece ao acaso? Em que é que fica então aquela definição da Fortuna? Donde resulta ter ela tirado o nome de acontecimentos fortuitos? Se ela é, na verdade, fortuna - não interessa adorá-la. Mas se discerne os seus adoradores para os favorecer, então já não é fortuna."

A pergunta que fica é: pra quê adorar uma deusa para o qual nada é garantido? Em outras palavras, para quê estabelecer um culto, com templos e rituais, se isso tudo não me permite barganhar com a deusa? Aqui eu percebo o quanto a relação incestuosa entre religião e razão gerou uma aberração que hoje esteriliza qualquer possibilidade de estabelecermos um retorno reverente ao espiritual - esse cristianismo racional é um grande dead end. A barganha racional é o princípio que rege a análise Agostiniana e que faz ele execrar a religião pagã antiga, dizendo indiretamente: olha como eles eram burros! Nossa como o deus cristão é mais racional, mais coerente e bom. Ao deus elevado à condição filosófica de necessário, podemos conferir um D maiúsculo. Agostinho não conseguiria adorar um deus irracional, um deus que poderia ser bom e mau e que no final das contas iria favorecer qualquer um, para que adorá-la então?

A partir desse cristianismo hibrido, só poderemos adorar um deus que nos fornecesse garantias - isso é a completa antítese da religião.

E qual não é minha surpresa quando vejo, mais de mil anos depois, Maquiavel esculhambar o cristianismo por ter destruído a religião dos italianos.

"...pelos maus exemplos daquela corte, a Itália perdeu toda devoção e toda religião, o que acarreta infinitos inconvenientes e infinitas desordens; porque, assim como, pressupõe-se o contrário onde ela falta. Portanto, nós, italianos, temos para com a Igreja e os padres essa primeira dívida, que é a de nos termos tornados sem religião e maus; mas temos ainda outra dívida, e maior, que é a segunda razão da nossa ruína. É que a Igreja manteve e mantém esta terra dividia." pg.55

Para entender a maneira peculiar com que os romanos viviam a religião podemos ver outros dois exemplos de Maquiavel, com relação a reverência pelos costumes religiosos:

"...estando Papírio em campo aberto diante dos samnitas e parecendo-lhes que a vitória era certa, quis travar batalha; ordenou então aos pulários que dessem seus auspícios; os galos, porém, não bicavam a comida, mas como o principal dos pulários visse a grande disposição do exército para combater e a certeza que havia no capitão e em todos os soldados de que venceriam, para não privar o exército da ocasião de bem combater, disse ao cônsul como os auspícios eram bons... (a mentira correu rápido, coisa que fez o cônsul ordenar aos pulários que fossem para a frente de batalha, para que pagassem com a vida caso estivessem mesmo mentindo) ... Foi assim que, enquanto avançavam contra os inimigos, um soldado romano, ao atirar um dardo, matou sem querer o principal dos pulários: ao saber disso, o cônsul disse como tudo estava correndo muito bem e com o favor dos deuses, pois com a morte do mentiroso o exército se purgara de todas as culpas e de toda ira que os deuses nutrissem contra ele."

Outro general mandou jogar os pulários ao mar, pois os galos não tinham bicado a comida. Disse o general:"Vejamos se sabem beber". Esse general foi condenado em Roma, não por ter perdido a batalha em questão, mas por ter conduzido os auspícios com temeridade, enquanto Papírio o fez com prudência.

A diferença entre esses dois casos não será percebida nem por um cristão, nem por um ateu racionalista. Porque aqui o fim não interessa, o caso é perceber que princípios não podem ser contornados pelo clamor das evidências, nem pela opinião dos que estão no comando. Maquiavel cita Tito Lívio alguns parágrafos antes:

"Ainda não havia a negligência pelos deuses que hoje domina, e ninguém adaptava a si, com interpretações, os juramentos e as leis"

O caso de Papírio poderia ser tomado como uma torção da lei, mas o interessante do caso não é a mentira, mas como ela é decidida. Papírio poderia aguardar descobrir a verdade, como um bom obsessivo faria, tendo em vista que todos podemos mentir. Colocar os pulários na batalha é seguir com a dúvida, de forma prudente. Veja que racionalmente as condições eram favoráveis, o general não tinha razão para consultar os pulários, mas isso foi feito e respeitado. Maquiavel quer deixar claro que a razão não é suficiente para determinar os destinos dos homens. Dentro deste contexto complexo, a religião exercia um papel fundamental de colocar no campo de batalhas nossa razão e nossas convicções. O pensador florentino percebe que os romanos, desde suas origens forjados no campo de batalhas, tinham a lucidez de compreender que ter a razão a seu favor não significava vencer batalhas.

As crenças fundadas pelos primeiros romanos através de sua religião permitiam aos vários italianos se unirem, disponibilizando a potencia dessa unidade para os desígnios do Estado. Perceba que, para Maquiavel, a religião não era uma forja de "crenças limitantes" para controle dos indivíduos pelos poderosos de plantão, algo que ele relacionava mais ao catolicismo, mas de crenças que expandiam as possibilidades de expressão e ação da comunidade reunida sob seus princípios. Maquiavel não era, até onde sei, uma pessoa espiritualizada, mas ele conseguiu perceber a religião para além do que os atuais espiritualistas esperam da religião.


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