Os deslocamentos do apolítico

Cena de os doze trabalhos de Asterix
Voltando das eleições no último domingo (voto em Guaratinguetá), um passageiro perdeu a passagem e entrou em pânico quando o motorista disse que não poderia embarcá-lo sem um comprovante impresso. Ele entrou no ônibus mesmo assim, disse que não ia descer, pediu ajuda. O motorista chamou a polícia e depois de uns 20 minutos de discussão, passageiros começam a pensar em mudar de ônibus, achar que o homem estava drogado, etc. Um casal tenta ajudar dizendo: "assim você está perdendo a razão". A moça do guichê imprimiu um mapa dos assentos com o nome do rapaz, a polícia insistiu com o motorista que o homem tinha razão e deveria ser embarcado. O motorista estava irredutível, aguardando do lado de fora do ônibus uma ligação que demorava a chegar. Uma passageira começou a chorar, temendo encontrar o metrô fechado.

"Eles falaram que eu vou dormir na rua!" gritava o rapaz andando e gesticulando pelo corredor do ônibus.

Esse é um mini retrato do Brasil. Eu sabia que a coisa era simples e de fato, depois de uma meia hora de discussão o ônibus partiu e chegamos a tempo, foi uma viagem rápida já que não havia trânsito na Dutra. Eu notei que o desespero do homem ao dizer que ia viajar de qualquer jeito foi o estopim para o motorista ter encrencado e enrolado até que um parecer chegasse da empresa de ônibus. "Você não vai entrar, se você entrar o ônibus não vai sair". Poderia traduzir de outra forma: "até deixaria você entrar se você tivesse sido respeitoso e calmo. Agora que você 'perdeu a razão' vou esperar, deixar a burocracia te esmagar de leve, assim como os olhares reprovadores dos passageiros angustiados". O motorista pôde colocar sua raiva em curso, em silêncio burocrático.

No momento do choque entre passageiro e motorista a "polarização" foi criada. Não haveria, a partir desse ponto, um diálogo possível sem que os afetos entrassem em questão. Em outras palavras, a polarização se constrói sobre o conflito afetivo e, a partir daqui, não existe mais solução argumentativa. Tanto é que não adiantou o mapa com o nome do passageiro, a polícia dizer que o passageiro deveria embarcar... o motorista dizia que precisava de um comprovante impresso, ou seria um pedido de desculpas impresso?

A polarização que vivemos hoje no Brasil é dita política(direita e esquerda é a versão sopa de papelão de um debate político), porém, está difícil encontrar um debate que seja político em seus desdobramentos, pois estamos a negar a política pelo ódio à corrupção sistêmica. Dizemos que é irrelevante mudar os políticos quando o esquema está corrupto, mas insisto em dizer que negar a política já é um ato político cujo único efeito é deslocar a questão para outro plano - fora do alcance do diálogo. Da mesma forma, quando dizemos que não temos ideologia estamos em uma posição pior do que aquele que admite ter uma ideologia "patética", afinal todos temos ideologias e a grande problema daquele que não a assume é torná-la inquestionável.

O político escolhido pelo cidadão que não possui vida política é o antipolítico, assim como o afeto mais comum da pessoa que "não perde a razão" é a raiva, ou seria a angustia?

O ponto é que quando acreditamos que temos que tirar os afetos do debate para torná-lo produtivo estamos novamente deslocando-os para outro plano, assim como o motorista fez ao esperar a ligação de um supervisor desconhecido. Nós ainda não entendemos porque existe tanta burocracia no Brasil, isso é algo sempre presente no "adebates". Os candidatos querem eliminar a burocracia para criação de empresas, nas tarifações, na gestão, pois isso não faz sentido racionalmente falando. Porém, a burocracia é um dos únicos planos em que o brasileiro médio pode exercer seus afetos.

Na psicanálise entendemos que nossos desejos inconscientes usam os caminhos disponíveis por nosso psiquismo para se expressar via sintomas, seja o corpo para histéricas ou os pensamentos para o obsessivo. No caso do brasileiro, a burocracia é historicamente um dos únicos meios disponíveis de expressão da fauna inconsciente. Observe os carros oficiais (geralmente o último modelo), os palácios governamentais, os amigos que passam na frente para atendimento no SUS, os desafetos que são prejudicados por "escolhas políticas", o julgamentos anulados, os impeachments, as escutas e delações liberadas, os leitos de UTI que passam a existir(só para você meu amigo). Esses exemplos não possuem nenhuma relação direta com gestão, ou processos jurídicos, ou administração pública - todos sabemos.

A trajetória comum daqueles que almejam um cargo político ou público é basicamente a mesma: sai de uma posição irrelevante para uma posição de autoridade, tipo um juiz que antes era um pária juvenil que passava o dia estudando códigos, o "fulano que estuda pra concurso", para se tornar uma "autoridade" que delibera sobre a vida de milhares de pessoas. Esse tipo de estrutura é o que torna a burocracia pública o único lócus de expressão narcísica disponível para maioria dos brasileiros apolíticos.

Enquanto não dispormos de mais meios para expressar o que sentimos de forma legítima, a burocracia não irá diminuir, nem a corrupção.

Dizem que Sócrates gostava da frequentar a ágora porque tinha uma mulher terrível. Eu acredito que a vida pública era a forma que ele descobriu de usufruir de uma relevância, de sair da invisibilidade do anonimato. A política abre possibilidades de expressão para o individuo de forma a visibilizar suas questões, sejam elas afetivas, filosóficas, econômicas... e abrimos mão disso quanto acreditamos que política é esse teatro que se arma de quatro em quatro anos para discutir majoritariamente economia, PIBs e desemprego.

O brasileiro apolítico que não pode perder a razão é o retrato da miséria existencial.

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