O que está em jogo quando negamos a ciência


O que o terraplanismo e o criacionismo tem em comum? Uma revolta contra a arrogância da ciência, quando esta acredita monopolizar a verdade - uma ilusão doce e antiga como Sócrates.

"Agora, porém a ciência, esporeada por sua vigorosa ilusão, corre, indetenível, até os seus limites, nos quais naufraga seu otimismo oculto na essência da lógica. (...) Quando divisa aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a girar em redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então irrompe a nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio." 

Neste trecho, Nietzsche joga com essa tendência humana para se aferrar à razão e à "vontade de verdade" como ferramentas universais para apaziguar o caos da existência humana e termina de forma nada otimista dizendo que o fim será a razão "morder o próprio rabo". Nietzsche retornou aos antigos gregos para apreender essa ilusão racionalista em seus primórdios filosóficos, coisa que não temos o luxo de fazer hoje, muito menos os cristãos e anti intelectuais de plantão. Nietzsche percebeu como a razão afetou a arte grega e conseguiu traçar um paralelo com seu século XIX, percebendo que o monopólio racionalista da verdade acabou por cortar os ligamentos do vigor trágico grego, assim, a ciência estaria prestes a desarticular a vitalidade da cultura ocidental. 

Quando a ministra Damares se pronuncia contra a teoria da evolução, ela está golpeando as sombras, tentando se defender de algo que não consegue ainda nomear. Para cristãos, conviver com uma cultura predominantemente tecnológica é um grande paradoxo, pois seguimos um pressuposto silencioso segundo o qual a ciência é o porta voz da verdade e as religiões e tradições nada mais tem a fazer na face da terra senão consolar os ignorantes. Quando a ciência avança por questões vitais para a religião ela acaba esvaziando completamente o sentido religioso da narrativa religiosa. Não podemos acreditar na evolução e no Gênesis ao mesmo tempo, e se ensinamos crianças na escola que a evolução é uma perspectiva científica, indiretamente estamos ensinando que a Bíblia é apenas um mito.       

"Substituto da religião — Cremos dizer algo de bom sobre uma filosofia, quando a apresentamos como substituto da religião para o povo. De fato, na economia espiritual são necessários, ocasionalmente, círculos de ideias intermediários; de modo que a passagem da religião para a concepção científica é um salto violento e perigoso, algo a ser desaconselhado“

– Nietzsche, Humano Demasiado Humano, §27

Pessoas que não possuem uma religião podem achar isso uma banalidade enorme, eu acredito que é a questão fundamental de nossa contemporaneidade. Enquanto os "homens da ciência" se sentirem atacados pelo obscurantismo, seguiremos sem perceber o cerne da questão. Os cristãos se debatem há seculos com investidas do racionalismo, agnosticismo, etc. contudo, no presente algo diferente está em curso: a ciência tem sido empregada de forma a desautorizar todas as formas de discurso, não poupando nenhuma narrativa, cozinhando nossas fibras míticas e tradicionais em fogo brando.

“Uma por uma, a modernidade foi despojando o homem de todas as pompas “particulares”, reduzindo-o ao (pretenso) cerne de “todo humano” – o cerne do “ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não social”. A modernidade desde o início se dispôs a libertar o homem de todas “as influencias e desvios históricos que corroem sua essência mais profunda”, a fim de que – como se esperava – “possa emergir nele como sua essência o que é comum a todos, o homem como tal”. “O homem como tal” era naturalmente sigla para dizer o ser humano subordinado a um só poder e por ele movido: o poder legislador do estado; ao passo que a emancipação, que devia efetuar para “a essência” poder brilhar com toda sua primitiva pureza, queria dizer a destruição ou neutralização de todos os pouvoirs intemediaires – poderes “particularizantes”, que sabotam a obra que o poder “universalizante” do estado moderno se esforçava para realizar. A batalha para descobrir a “essência humana” era apenas uma dentre as muitas batalhas travadas na guerra pelo direito de legislar, e legislar monopolisticamente. Ou, mais propriamente, a guerra para substituir a “mão morta” do costume e da tradição “uma mão de fato muito viva graças aos mecanismos localmente entrincheirados de reprodução controlada) pela vontade do estado como legislador exclusivo. As outras formas – consuetudinárias e tradicionais – deviam ser esmagadas, desembaraçando-se delas, para se poder revestir de roupa nova, agora feita pelo desenhista, o corpo e a alma desnudos do “homem como tal”.
Despido da carapaça de seus laços “naturais”, a “essência” do “homem como tal” comprovou-se ser, entre outras coisas, uma solidão social.”  Bauman

O que vemos em curso é o tal "movimento perigoso" do qual Nietzsche falou, pois nossos Estados nacionais, juntamente com o aprofundamento de um capitalismo de consumo, implementaram uma racionalização em larga escala que se enxerta nos vínculos humanos para reduzir os indivíduos à átomos quantificáveis e maleáveis, criando condições favoráveis para um controle implacável, seja por parte do Estado(Séc. XX) ou de grandes corporações (séc XXI). Esse movimento acaba por tornar efetivo os gráficos e índices econômicos que adoramos acompanhar nos noticiários. Essa razão instrumental tem dizimado pessoas e culturas nos últimos séculos e agora seu principal objetivo se concretiza com a redução do indivíduo a uma posição de completa dependência do mercado econômico.

A ministra Damares é uma dessas novíssimas partículas humanas que se descobre completamente desamparada, nada lhe restando senão se ressentir do desterro compulsório operado pela racionalidade monopolizante que se apropria da verdade para atacar outras formas de conhecimento, igualmente legitimas, diga-se de passagem. 

“Não se poderia assim julgar nem sobre a existência nem sobre o valor do narrativo a partir do científico, nem o inverso: os critérios pertinentes não são os mesmos para um ou outro. Há, apenas, que se admirar com esta variedade de espécies discursivas, como se faz com as espécies vegetais e animais. Lamentar-se sobre “a perda do sentido” na pós-modernidade seria deplorar que o saber não seja mais principalmente narrativo. É uma inconsequência. Uma outra não é menor: a de querer derivar ou engendrar (por operadores tais como o desenvolvimento, etc.) o saber científico a partir do saber narrativo, como se este contivesse aquele em estado embrionário.”  Lyotard

Por isso não acredito que a religião precise estar de acordo com pressupostos racionais que mimetizam a ciência para se sentirem "verdadeiras", nem deixo de admirar a pesquisa científica por lhe faltar um sentido estético ou existencial mais consistente. Acontece que estamos no meio de um extenso conflito cultural, no qual poucos atores possuem uma visão ampla o suficiente para conseguir articular o que está em curso. O resto de nós que não consegue acompanhar o que acontece, precisa se apegar a tabuas de salvação, como essa ideia tosca de um combate entre religião e ceticismo, ou entre ciência e obscurantismo. A coisa, como notou Bauman, é muito mais tenebrosa.

Não conseguirei me emocionar com a descrição do Sol como uma imensa bola de hidrogênio e hélio em alta temperatura, isso é interessante para se desenvolver modelos teóricos e estudos, mas não me sensibiliza esteticamente falando. Como disse Sontag, não faz sentido dizer que um pôr do sol é interessante, na verdade, é um espetáculo de beleza e emoção. Agora está em jogo uma batalha por um monopólio da legitimação e da verdade que está colocando tudo em cheque, inclusive a vida na Terra, por que não nos unimos todos em torno do combate desse monólito? Por que é tão difícil uma inflexão entre razão, arte e espiritualidade que possa articular todos os campos da vida e suas potências incomunicáveis para que possamos transcender essa perspectiva hierarquizante do conhecimento? 

        

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