O que fazer com o amor?

The misfits 

"Cuidado com o homem médio e a mulher média
Cuidado com o seu amor, seu amor é médio
Busca o mediano

(...)

Não sendo capazes de criar arte
Eles não entenderão arte
Eles considerarão seu fracasso como criadores
Apenas como um fracasso do mundo
Não sendo capazes de amar plenamente
Eles acreditarão que seu amor é incompleto
E então eles terão ódio de você
E seu ódio será perfeito"                     Charles Bukowski

Existe no mundo uma fobia dos afetos, uma aversão aos sentimentos e uma incapacidade de simplesmente sentir - sem precisar explicar ou justificar.

Por isso estou mudando da pergunta "por que" para "como", como você sentiu essa angústia? Desde quando ela te frequenta? De onde vem, para onde vai? Aqueles que se apaixonam normalmente me perguntam: quando isso vai passar? 

Costuma demorar meses, ainda não testemunhei uma paixão que durasse anos. Nossa vida não tem estrutura para suportar paixões e não existem espaços para dar vazão a isso. Grande parte de toda religião foi uma tentativa de dialogar com essas aberturas vulcânicas de nossa carne, elaborando rituais e sacrifícios que toleravam os apaixonados, os deixava livres em seus estases e convulsões. Agora, como lidar com isso em uma rotina que comporta 12 horas de trabalho, reuniões e feedbacks?

Essa incapacidade de lidar com os afetos, de saber o que fazer com eles, nos faz abrir mão de tudo o que possa despertá-los.

Quantas famílias propagam a didática do ódio? Os filhos não tiraram boas notas, ameaçamos; o parceiro não lavou a louça, xingamos... não saímos mais, você não é um bom pai, você engordou, você não transa, a vida é uma merda não? Qual família é feliz debaixo do sol?

O ódio é a última oitava dos afetos, a mais pobre e a mais previsível. 

Certa vez vi uma criança chegar chorando na escola, na época fazia um trabalho voluntário num cantão de São Paulo. A criança dizia que iria matar policiais e que a primeira coisa que faria na vida seria comprar uma arma e matar policiais. Isso porque, segundo ela, tinha sido pega com amigos por uma viatura e tinham passado a noite sendo espancadas por policiais. Essa criança irá crescer e será um adulto violento, poderá até matar policiais, e assim os policiais irão continuar matando nas periferias. Previsível como a engrenagem de um relógio. 

Por que as multidões não podem sentir alegria? Por que vemos o carnaval com uma ponta de desconfiança? Por que não aceitamos outras sexualidades e outras formas de amar? A religião no Brasil geralmente se estabelece sobre uma condenação da carne e dos prazeres... é um cristianismo do sofrimento na Terra, da negação de si e da submissão, como se a virtude fosse alcançável apenas por uma atitude racional, estando os afetos do lado do diabo e suas tentações. Sinta, mas não muito... podemos perder a razão. 

Do lado de fora da igreja, apelamos para a compulsão como ferramenta de controle dos afetos, uma forma de deixá-los em seu lugar invisível. Não à toa, ao lado de toda igreja existe um bar. Bebemos para amortecer nossas misérias. Dissolvemos na cerveja o coágulo de amores não correspondidos, carências emudecidas, carinhos ausentes. 

"há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro."   Charles Bukowski 
               
O ódio e as compulsões são o pão de nossas multidões, somos todos alimentados por essa ração em nosso transporte público lotado, nas cobranças impossíveis e nos telejornais sangrentos. Assim, amar se torna uma tarefa impossível, sacrílega. 

"Ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo. A justiça social significa que nos negamos muitas coisas a fim de que os outros tenham de passar sem elas, também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las."  Freud - Psicologia das massas 

Por que amar afinal? Seremos traídos, passados para trás e feito de bobos. Amar nunca vale a pena, argumenta o experimentado da vida, com um olhar melancólico e um copo de cerveja na mão. Isso é verdade, mas seria tudo? O amor é destinado a ser enganado, disso não tenho dúvidas, apenas me pergunto por que insistimos em amar? Por que nosso coração não cansa de ser enganado, massacrado, negado, frustrado, confinado em kitnets... o que precisamos descobrir na jornada amorosa? Amar não me parece uma tarefa que vise um sucesso, hoje o valor máximo do "homo corporativus".

"Mas, assim que aproximou de leve a luz do rosto do marido, eis que se revela o grande segredo: ela avista a mais bela e delicada de todas as feras, Eros, o deus do amor, ali deitado, o mais belo dos deuses. Até a chama do candeeiro estremeceu, derramando mais luz diante dessa visão, e o punhal arrependeu-se de ter uma ponta tão aguçada. Psiquê, ao contrário, embevecida pelo que via, com a alma aniquilada, trêmula e pálida, cai de joelhos e procura enterrar o punhal no próprio seio."
Erich Neumann - Eros e Psiquê

Amar é um percurso tortuoso, incerto. É um caminho no qual avançamos trêmulos, apenas para descobrir que o monstro ocultava o divino. O monstro do qual as irmãs de Psiquê falavam, as irmãs que eram infelizes em seus casamentos, era o monstro que tornaria Psiquê uma delas. Imagino que se Psiquê fugisse, a história seria diferente. Desde o início da história, Psiquê não foge. O pai recebe uma previsão de que a filha se casaria com um monstro, e, para minha surpresa, ela se prepara para seguir até o fim: 

"... a virgem calou-se e misturou-se às pessoas do séquito com o passo muito mais enérgico. Foram até o alto do íngreme rochedo, onde abandonaram a jovem às nupcias de morte com o monstro. A tocha nupcial ficou lá, mas apagada a chama pelas lágrimas da moça... Psiquê tremia de medo, sozinha no alto do rochedo;"      Erich Neumann

Normalmente os homens da mitologia fogem de seus prognósticos e causam um alastramento da tragédia, no caso de Psiquê ela avança, trêmula, mas avança. É claro que ela tenta se matar várias vezes, apanha, é humilhada, recebe tarefas impossíveis, mas ela não arreda pé da trilha amorosa. Para cada desafio impossível ela descobre uma ajuda, seja das formigas, juncos do rio, águia de Zeus, torre, acho curioso que as pessoas não ajudam, mas as coisas... objetos aparentemente secundários resgatam Psiquê de sucumbir em suas crises, permitindo a descoberta de uma solidariedade dos elementos marginais da trama divina. 

Eros só dá o ar da graça no final da história, tipo os policiais dos filmes que só chegam quando o vilão morre. Isso me parece indicar que Psiquê tinha que resolver essa parada sozinha, era um percurso que o humano precisava trilhar para encontrar-se com o divino. Hoje as pessoas querem subir ao olimpo sem passar pelo Hades, sem falar com a sogra Afrodite, sem hesitar na escuridão do monstro-amor. Psiquê nos diz que apenas a solidariedade dos marginais, de uma experiencia de fragilidade e precariedade, pode nos salvar de sermos destruídos pela brutalidade do imperativo transcendente de nossos ideais.

"Se vai tentar, vá até o fim.
Caso contrário, nem comece.
Se vai tentar, vá até o fim.
Pode perder namoradas, esposas, parentes, empregos e talvez até a cabeça.
Vá até o fim.
Pode ficar sem comer por três ou quatro dias.
Pode congelar no banco do parque.
Pode ser preso.
Pode receber escárnio, gozações, isolamento.
Isolamento é um presente, todo o resto é um teste da sua resistência, de quão forte é a sua vontade.
E você fará a despeito da rejeição e dos piores azares e será melhor do que qualquer coisa que possa imaginar.
Se vai tentar, vá até o fim.
Não há outra emoção como essa.
Você estará sozinho com os deuses e as noites queimarão como fogo.
Faça, faça, faça. faça,
até o fim, até o fim.
Você cavalgará a vida diretamente para o riso perfeito.
Essa é a única boa luta que existe." 

Charles Bukowski   

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