O Deus carne

André Ávila / Agencia RBS

Você acredita em Deus? Pergunta o Padre ao presidente da companhia que processa carne em uma pequena cidade do Texas, Odin Quincanmon. Ele responde que sim, o Deus carne.
Traduzo aqui um trecho da conversa da série The Preacher, 1ª Temporada.

Jesse Custer : Eu disse para você servir a Deus, Odin
Odin Quincannon : Eu sirvo, sou um devoto.
Jesse Custer : Que tipo de Deus quer destruir uma igreja?
Odin Quincannon : O Deus da carne, é claro.
Jesse Custer : O Deus... da carne?
Odin Quincannon : O Deus do que é tangível. Que é tangível e verdadeiro. O Deus da carne.
Jesse Custer : Certo..
Odin Quincannon : Você acha isso engraçado?
Jesse Custer : Não, não. É completamente maluco.
Odin Quincannon : Você sabe o que é maluco, Padre? O que é completamente insano? Seguir um Deus que é silencioso. Isso é loucura.
Jesse Custer : Eu concordo.

Odin também pergunta se o Padre conhece o Brasil. Diz que existe um abatedouro em Cuiabá que processa milhões de cabeças de gado, diz isso com um semblante de admiração... acho curiosa essa citação, pois conectou algumas coisas na minha cabeça.

O Brasil abate em média 88 mil bois e vacas por dia e possui mais bois do que pessoas. De acordo com as entrevistas que ouço da parte do governo, a ideia é avançar e estimular a produção de carne e soja para alavancar o crescimento econômico do país. Se preciso for, avançamos sobre a Amazônia, sobre o Pantanal, etc. A meta é transformar o pais em um enorme pasto.

Por que fazemos isso? Porque seguimos o único Deus que existe.. o Deus carne.

Penso nisso quando vejo uma propaganda do Burger King com aquelas pilhas de hamburgers, ou vendo pessoas fazendo churrascos, festas de fim de ano... Arriscaria dizer que nosso maior valor nacional é o churrasquinho do final de semana, com bastante cerveja. O resto pode esperar. Não quero criticar o consumo de carne, mas esse exagero estratosférico alavancado pela industria da carne.

A carne apenas se disponibiliza para o consumo quando esta morta, precisamos matar os bois para transforma-los em cortes, em carne moída, filé mignon, etc. Extraio dessa imagem uma fórmula que resume nosso caráter: matar para disponibilizar/matar para tornar útil. Isso estava no coração dos sacrifícios antigos e não é de se espantar que os antigos açougues ficavam nos templos. Os antigos matavam para oferecer dádivas aos deuses ou perdoar pecados e eventualmente comiam o que era sacrificado.

Não sei o que levou os primeiros sacerdotes a oferecer animais para seus deuses em troca de boas colheitas, vitoria na guerra, saúde, amor, o que nos fez acreditar que o sangue derramado seria capaz de realizar nossos desejos? Seria a utilidade o motor do sacrifício, ou o sacrifício o motor da utilidade? Estou inclinado a acreditar que toda utilidade pressupõe um sacrifício, coisa ilustrada pelas lendas Yorubá sobre o orixá Ogum e sua importância tanto para os sacrifícios quanto para a forja de ferramentas.

"Sem a permissão de Ogum não são feitos sacrifícios para as demais divindades. Ele divide com Exu a condição de olobé, o senhor da faca, importante ferramenta confeccionada com o ferro, metal de sua propriedade exclusiva. Alguns itãs relatam que o orixá general - que só disputa o primeiro lugar em coragem, ombro a ombro, com Obá, a amazona belicosa, de quem foi o primeiro marido - exigia vassalagem de todos, a quem tratava com certo descaso, por ser senhor dos sacrifícios. Sem sua interferência, nenhum orixá seria alimentado. Como abater um animal sem o auxílio de ferramentas do asiwaju?!" Nanã(escrito por Cléo Martins-pg.67)

Toda tecnologia pressupõe um sacrifício, seja do meio ambiente para coletar minérios, petróleo, energia, coisa que já nos habituamos; seja de nossa humanidade, com a transformação dos seres em objetos quantificáveis, coisa que atingiu o clímax nos campos de extermínio nazista. Segundo relatos de Rudolf Hoss, comandante de Auschwitz, os crematórios dos campos foram "otimizados" para matarem com mais eficiência. Um crematório podia matar de 700 a 1200 pessoas. Este processo utilizou o pesticida Zyclon B na forma gasosa e contava com um sistema de ventilação que removia o veneno das câmaras para que os funcionários pudessem retirar os corpos. Esse esquema matou em torno de 1.1 milhão de pessoas. Número impressionante, mas não se compara ao número de seres que matamos todos os dias para manter nosso estilo de vida.

Diante de Auschwitz entendemos que todos somos carne. Uma máquina mata humanos, animais, plantas, sem distinguir cores ou raças. E por que precisamos matar? Precisamos matar para poder usar, para exercer nosso poder sobre as coisas. O poder moderno é o poder da morte sacrificial elevado ao status de divindade. Não cultuamos mais Jeová, Ogum, Jesus... tudo isso foi superado pelo Deus carne, o único deus palpável.

Ainda acreditamos que iremos desenvolver uma tecnologia para remover o carbono da atmosfera, para reflorestar, para eliminar doenças, isso porque ainda não entendemos que toda tecnologia pressupõe um sacrifício, e o que está em questão agora é o sacrifício das próximas gerações.

Jovens como Greta Thumberg entenderam que a vida que está diante dela nada mais é que o corredor de um abatedouro. Não vamos parar, porque não conseguimos abrir mão do poder. Temos escolhas? O que podemos fazer senão trabalhar em algum subemprego e abraçar alguma compulsão(comida, alcool, tabaco, remédios)? Eu gostaria de ver um lugar para quem não gosta desse sistema de coisas, com uma placa: você que está de saco cheio venha para cá! Aqui você trabalha apenas para subsistência, terá um canto para dormir, natureza disponível, tempo, paz. Por que não temos opções? Temos comunidades alternativas, certo? Mas por que não temos um Estado alternativo? Por que tudo é tão estreito? Não estamos num grande corredor que nos impulsiona para frente sem questionar... sussurrando em nossos ouvidos:a única certeza da vida é a morte?

Toda a paisagem brasileira é um grande pasto esperando gado. Nasci em Guaratinguetá e desde sempre quando observo a paisagem eu vejo pastos, a maioria vazia. Esse é o mundo que estamos legando para as próximas gerações... um grande pasto vazio para eles pastarem. Todo trabalho é um destruir, inicialmente das florestas para criar pastos e plantações, posteriormente dos seres para deles extrair produtos e capital.

Então estendeu a mão e pegou a faca para sacrificar seu filho.
Mas o Anjo do Senhor o chamou do céu: "Abraão! Abraão! " 

"Eis-me aqui", respondeu ele.
"Não toque no rapaz", disse o Anjo

Gênesis 22:10-12

Um pequeno adendo... Achei tão incrível a semelhança entre Odin Quincannon e o professor Safatle que gostaria de deixar isso registrado..rs 

        

O professor Safatle possui outra semelhança com o Sr. Quincannon, uma ideia fixa: denunciar que a democracia não existe no Brasil, mas sim um "necroestado"... enquanto Quincannon quer denunciar a inexistência de Deus, dizendo que em seu lugar o único deus verdadeiro é o "Deus carne". 

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