Um gesto ameaçador


Quando ia à padaria costumava ver os títulos das revistas na lateral da banca de jornal, era um tipo de exercício oracular observar como os editoriais escolhiam seus títulos, um deles era: "A ciência do destino". Na revista, eu imagino, o destino ganhou ares de um campo em prospecção, principalmente com a engenharia genética e a manipulação dos algoritmos. Em outras palavras, antes do corona vírus, o destino estava sendo colonizado pela tecnologia e vinha formatando nossa vida "por fora", deixando aos proprietários de tais meios o poder de decidir o destino da maioria.

Bastava ver uma palestra do historiador Yuval Harari para que eu sentisse calafrios, pensava... meu deus, em breve todo acaso será determinado por uma equipe de engenheiros de alguma rede social do vale do silício! Esse era o meu pesadelo antes do corona, agora me sinto mais esperançoso... parece que o velho destino se apresentou à humanidade e está fazendo o mundo parar. Nós realmente não sabemos o que vai acontecer nos próximos dias.

Antigamente quando coisas catastróficas aconteciam, iriamos consultar os sacerdotes, curandeiros, videntes, astrólogos; hoje, nos acostumados em consultar os augúrios apenas em questões mais pessoais e deixamos as políticas públicas para os cientistas e especialistas. Essa transformação de nosso estilo em lidar com o destino reflete uma mudança profunda na maneira como enxergamos o cosmos e o dessacralizamos, transformando-o em um caos domesticável apenas pelas ciências e seus laboratórios. Daí também avançamos sobre as coisas como colonizadores com a febre do ouro e tudo passou a ser um espaço do humano, e nossa ansiedade cresceu na mesma proporção de nossos poderes.       

Gostaria de ilustrar essa ideia com um trecho do livro de Roudinesco chamado Família em Desordem:

"A mulher, no sentido freudiano, é portanto comparável à Grécia antes da Grécia sofocliana, a uma promessa de civilização antes da civilização. Quanto à diferença sexual, é reportada a uma oposição entre um logos separador e uma arcaicidade exuberante. Daí a célebre fórmula: 'O destino é a anatomia.'
Contemplada por Freud em duas ocasiões, e em dois contextos diferentes, em 1912 e em
1924, essa fórmula aludia a uma conversa que Napoleão teria tido com Goethe quando de um
encontro em Erfurt em 2 de outubro de 1808. O imperador evocara as tragédias do destino por ele
condenadas. Elas haviam pertencido, segundo ele, a uma época mais sombria: 'O que nos importa
hoje o destino?, dissera, o destino é a política.'" pg61

Nessa citação vocês podem perceber porque Freud utilizou a frase: "O destino é a anatomia". Muita gente depreende dela que Freud era um pensador machista fixado no falo, interpretação que é desmontada por Roudinesco pela referência à Napoleão. Quando diz que o destino é a política, o imperador francês aponta para a situação do homem moderno emancipado dos augúrios, capaz de tecnicamente destronar os deuses e determinar os rumos do mundo. Neste novo cenário, o acaso migra para a política e para o imprevisível das relações humanas. Para Freud, a vicissitudes do destino não mais afirmavam seu poder pelo cosmos cultural e seus mitos, mas pelo "arcaico" herdado pela via do corpo e seu impacto inescapável na construção do sujeito.

É claro que isso é pode ser questionado, pensadores queers vão dizer que o corpo também é um território da cultura e de disputas de poder, abrindo novas gramáticas e maneiras de se apropriar e fruir a corporalidade. A tecnologia de ponta do vale do silício, em outra esteira, dirá que o corpo e o comportamento humano podem ser customizados ao sabor do freguês ou dos departamentos de psicologia aplicada ao marketing. Esse universo de possibilidades sem limites aberto pela contemporaneidade, de pura emancipação e disponibilidade, parece enfrentar agora um vírus que nos acena, se interessou por nós. O que fazer quando as coisas nos vêem? Seria esse o ponto cego que o corona vírus está revelando? Nossa relação com o mundo não ficou acomodada às infinitas possibilidades de consumo, de forma que agora não sabemos o que fazer quando as coisas, seja o vírus ou a ignorância, insistem em nos devorar silenciosamente.

A entrada do Covid-19 me parece coroar a reentrada do destino em cena, capaz até de nos parar e  fazer contemplar o avanço do caos..aturdidos. O que essa reentrada revelará?

"O que falta agora ao eu é, por certo, realidade - é o que comumente se diz, como de um homem que se tornou irreal. Mas, examinando melhor, é de fato a necessidade o que falta ao homem... O que realmente lhe está faltando é a força para... submeter-se ao necessário em si próprio, ao que pode ser denominado o limite de cada um."

O limite de cada um pode ser interpretado de varias maneiras. Pode ser visto como nossa incapacidade de contornar a ameaça do vírus, não termos vacinas, remédios e nada que a tecnologia proporcione pode fazer frente ao avanço da doença. Ou pode ser presentada pela nossa incapacidade de contornar a morte, independente de nossa capacidade de negação, ela continua lá - inexorável. Todos nós estamos sujeitos à morte, independente de nossa classificação econômica. Os sinais que as noticias nos trazem apontam para um caos iminente, seja por parte da pandemia ou de nossos queridos políticos, levantando um frio na espinha... não sabemos o que vai acontecer e não conseguimos mais nos iludir com a mesma facilidade pré pandemia.

Kierkegaard nos convida a deixar de lado um mundo de infinitas possibilidades por um reencontro com nós mesmos e nossa finitude. Precisamos abrir mão dessa espera de que as coisas voltarão ao normal, de soluções fáceis, do "tudo é possível, basta ter vontade"... tendo em vista que esse bla bla bla é justamente o núcleo duro de nossa civilização, podemos perceber o quanto estamos distantes de encontrar nossos limites e formar um caráter minimamente consistente. Os antigos tinham o luxo de encontrar o destino com mais frequência, vide a curta expectativa de vida de nossos antepassados. Creio que aprendiam a olhar o tempo e as coisas com mais cuidado.

"A infelicidade de um eu desta espécie não está em nada ter feito nesse mundo, mas em não ter tomado consciência de si próprio... Em vez disso, o homem perdeu-se deixando que seu próprio eu se reflita imaginariamente no possível... Mas o possível é um extraordinário espelho que só pode ser usado com a maior prudência. É na verdade um espelho ao qual podemos chamar de mentiroso. Um eu que se olha no seu próprio possível só é semi verdadeiro, porque, nesse possível, está muito longe de ser ele próprio, ou só o é parcialmente."     

O encontro com o destino seria um reencontro com que nós possuímos de fatal e necessário? Inspirado por essa citação, eu acredito que o que mais tememos dentro dessa história de quarentena é a possibilidade de encontrarmos nós mesmos. A morte em si seria aquela ocasião que nos puxa para o irreversível ( sempre esteve lá, crepitando em nossas profundezas). Esse irreversível incômodo, incontavelmente negado, relativizado, escamoteado por nossa cultura moderna...  sempre brota, renasce, onde nosso precioso livre arbítrio se esfumaça.

Podemos disfarçar a vida inteira, várias vidas. Mas o destino, esse rastro de pólvora esquecido em nossas almas... acende quando menos esperamos.

Fecho com este curioso conto, narrado pela dona Morte:

Existia um mercador em Bagdá que um dia mandou o seu criado ao mercado comprar provisões, depois de um certo tempo o criado volta branco e tremendo dizendo: — Mestre, eu estava agora no mercado quando levei um esbarrão de uma mulher na multidão e quando eu me virei eu vi que era a própria Morte que havia esbarrado em mim. Ela olhou para mim e fez um gesto ameaçador. Agora, me empreste seu cavalo que vou fugir desta cidade para evitar o meu destino. Vou para Samarra e lá a Morte não irá me encontrar.

O mercador emprestou o seu cavalo e o criado montou e cravando as suas esporras nos flancos do cavalo foi galopando o mais rápido possível.

Então o mercador veio ao mercado e me vendo na multidão veio até mim e falou: — Por que você fez um gesto ameaçador ao meu criado quando você o viu essa manhã?

Aquilo não foi um gesto ameaçador, eu disse: — Foi apenas um momento de surpresa. Eu fiquei espantado em vê-lo em Bagdá, já que tenho um encontro com ele essa noite em Samarra.

Tradução da versão de W. Somerset Maugham

Esta história foi retirada do blog de Niso Russian e se chama O encontro em Samarra
https://medium.com/@nisoar/o-encontro-em-samarra-a69ca99e847d




 






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