Esperança em tempos sombrios


"O tipo de esperança sobre o qual eu frequentemente penso (especialmente em situações que são particularmente desesperançosas, como a prisão) eu entendo acima de tudo como um estado da mente, não como um estado do mundo. Ou nós temos esperança dentro de nós, ou nós não temos; é uma dimensão da alma; não é essencialmente dependente de alguma observação particular do mundo ou estimativa da situação. Esperança não é um prognóstico. É uma orientação do espírito, uma orientação do coração; ele transcende o mundo que é percebido imediatamente, e é ancorado em algum lugar além do horizonte. Esperança, nesse sentido profundo e poderoso, não é o mesmo que a alegria quando as coisas vão bem, ou a disposição para investir em projetos que são obviamente direcionados para um sucesso no curto prazo, mas, ao contrário, uma habilidade para trabalhar por alguma coisa porque ela é boa, não apenas porque tem uma chance de dar certo." Vaclav Havel

Eu tirei essa citação do livro "Esperança na escuridão" de Rebecca Solnit, creio que este tema valha alguns minutos de nossa reflexão, ainda mais por estarmos em um momento ainda mais tenebroso do que no qual a obra foi escrita (2010). Nosso momento atual me parece marcado por uma completa falta de esperanças e sonhos, nem tanto pela crise em si, mas pela absoluta falta de liberdade imaginativa do qual somos vítimas. Este livro vem a abrir um pouco esta cortina de ferro que se estende com o noticiário "realista" combinado com a análise racional/pragmática que infesta tanto os jornais quanto os canais de youtube.

A atual praga das fake news é um passo natural na decomposição da verdade e seu "formato", afinal, já não é importante ser verdade, mas parecer verdadeiro. O conflito entre o verdadeiro e o falso segue impedindo um pensamento que descubra saídas mais férteis, mais inusitadas. 

"É sempre muito cedo para ir para casa. E sempre é muito cedo para calcular os resultados. Eu uma vez li uma anedota de alguém no WSP (movimento das mulheres pela paz), o primeiro grande movimento antinuclear nos Estados Unidos, um movimento que contribui para uma grande vitória: o Tratado de Banimento de Testes Limitados de 1963, o qual permitiu o fim dos testes de armamentos nucleares, apontando grandes quantidades de partículas radiativas que foram detectadas no leite materno e nos dentes dos bebês... Uma integrante do WSP disse como se sentiu tola e ridícula protestando em um dia chuvoso na frente da Casa Branca. Anos depois ela ouviu o Dr Benjamin Spock - que se tornou um dos mais importantes ativistas no tema - dizer que o ponto de virada para ele foi ver um pequeno grupo de mulheres protestando na chuva do lado de fora da Casa Branca. Se elas eram tão apaixonadamente comprometidas, ele pensou, ele deveria dar mais atenção à causa que elas defendiam."   

Esta passagem deixa claro que o elemento racional não é fundamental para conseguir mudanças, não precisamos de uma tropa de especialistas para saber o melhor caminho e para cobrar boas práticas das autoridades. Quais são as chances de um grupo de mulheres protestando na chuva conseguirem uma mudança consistente no "sistema" governamental que gerencia nossa vida coletiva? Zero, certo? Esse é o erro mais comum que percebo em minhas conversas sobre "o terrível estado de coisas que vivemos", normalmente ouço que tudo se encadeia em uma rede interminável de atores corruptos e que tudo está fadado ao fracasso. Racionalmente, não há saídas. 

Quando Vaclav Havel fala de esperança, ele está apontando exatamente para isso. Ele ficou cincos anos preso por protestar contra o governo comunista na Checoslováquia, e acabou colaborando para uma transição pacífica de regime, o que não é pouco, sendo o primeiro presidente da independente Republica Tcheca. Ele era um artista, escritor e ativista, portanto não era um político do tipo que costumamos ver por aqui, pois tipicamente oscilamos entre o artista oportunista e o mafioso de famílias tradicionais na política. O que me parece interessante em nosso cenário político e ideológico é que todas as iniciativas são calculadas para conseguir poder, eleição, instrumentalizar as instituições, etc. Não à toa, a maioria das discussões sobre o poder se resuma a um "jogar o jogo", um xadrez de interesses que muda de forma quase matemática, o que impermeabiliza nossa capacidade de lutar e nos dispor a discutir questões que são mais importantes do que o estéril jogo do poder, nunca produzindo mudanças significativas ou soluções concretas para os problemas que nos atormentam.  

Repito suas palavras: "(esperança é) uma habilidade para trabalhar por alguma coisa porque ela é boa, não apenas porque tem uma chance de dar certo."

Não podemos nos limitar a ter razão sem acreditar que mudanças são possíveis. Como disse Maria Popova: "crítica sem esperança é cinismo". Acredito que quando buscamos ter muita razão, no fundo tememos falar em primeira pessoa. Isso explica porque temos tantos intelectuais formidáveis e poucas mudanças concretas. Ainda não é claro o quanto de covardia existe em cada argumento bem construído, em cada fala bem arquitetada existe uma "esquiva mortal" que impede as pessoas de se posicionarem frente ao desejo, sempre frágil e contingente.

"Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira decisões 
Desmaia no indeciso pensamento, 
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação."               Hamlet

Meus amigos mais inteligentes são também os mais tristes, talvez porque seguimos a máxima bíblica que diz "na muita sabedoria há muito enfado e quem aumenta ciência, aumenta tristeza". Me parece que esperamos uma racionalidade desça ao mundo para que possamos nos inserir e participar mais ativamente, quase como se as coisas estivessem tão malucas que não conseguimos interagir com essa loucura. Até quando será assim? Ou como poderíamos acertar as coisas para que possamos começar a fazer algo, quando o mundo voltará aos eixos?

Esse impasse entre a realidade e a racionalidade é antigo como a vida, como não enlouquecer? Creio que entre o mundo e a racionalidade, prefiro ficar com o mundo, pois essa racionalidade não nos serve mais. É uma razão que quer nos poupar da culpa de errar, como se o saber fosse suficiente. Estamos todos já sobrecarregados de culpa e só conseguimos, então, reclamar e nos indignar girando no carrossel das verdades, enquanto o mundo acaba e queima. 

"Resistência é o segredo da alegria... Resistência é acima de tudo uma questão de princípio e uma forma de viver, é transformar-se em uma pequena república do espírito não conquistado. Você espera resultados, mas não depende deles." 

Quando nos desvinculamos de uma lógica, as coisas melhoram. Esperança é desvincular-se da lógica pessimista segundo a qual a vida tem um sentido racional, uma lógica que diz que se as coisas estão ruins, é porque lhes falta uma lógica. Por isso, pinta-se um mundo mergulhado no caos, para depois termos o trabalho de reunir os cacos de sentido espalhados pelo noticiário. O caos deliberado é o mesmo que o caos fortuito, um disfarce perfeito e um prato cheio para quem gosta de resolver puzzles.

A esperança não tem razão, e normalmente está fora do lugar. Está na vertigem de parar o fluxo das coisas e afirmar. Não existe ocasião melhor para se ter esperança do que hoje.       

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