A vida na hora

Cena do filme cute Lost in Translation


 "A vida na hora

          Cena sem ensaio. 

        Corpo sem medida.

Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

Um dia marcamos um encontro, caímos naquela coisa de se ver, ir beber um cerveja na mesa do bar. 
Tudo bem, que tal próximo sábado? Afinal, estamos em São Paulo, nunca pode ser hoje. 
Seguindo todos os protocolos, amarro meus sapatos e penso: o que será de mim hoje?
Caminhando pelas ruas, noto que as pessoas se encontram clandestinas, sem mascaras no meio da rua. 
Parece que conheço aquela pessoa! Não, seu olhar me atravessa

Um bar, luzes indiretas... tudo parece ir bem. Algo me diz que tudo que está acontecendo, na verdade, não tem nada a ver com o que está acontecendo. Conversamos sobre as coisas, mas, nas sombras, estamos nos olhando, achando aquilo bonito, isso engraçado. As mãos estão dançando para elas mesmas em cima da mesa. Você gostou da entrada? É bom esse drink, opa, não foi esse o drink que eu pedi.

Você me acha seria? Estranho.
"De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Você não poderia ser uma pessoa 100% correta, ninguém é. Mas você mora muito mais longe e chegou mais cedo do que eu. Você seria uma pessoa 110% correta. 
Preciso parar para achar o banheiro, os garçons me guiam pelo salão escuro e acho uma escada levemente iluminada. Enquanto mijo exultante, costumo ler a fina literatura das paredes.. "gosto de beijo grego" ou "eu chupo bem, ligue para este tel" me fazem rir, que noite boa. 

Ela me parece mais bonita pessoalmente do que nas fotos. O papo sobre ética parece esbarrar sobre alguns lugares comuns, não seria muito prudente apresentar umas ideias arrojadas sobre comportamento humano em um primeiro encontro certo? Continuo falando sobre como a religião nos impede de encontrar um verdadeiro relacionamento com Deus, não entendo porque eu insisto em dizer isso para pessoas que me interessam. Será que isso seria uma tentativa de encontrar um parceiro nessa loucura existencial que é viver num bar com doses caras em uma noite garoante e escorregadia? Minhas mãos atravessam o campo aberto da mesa e tocam as suas e por uma fração de segundo parecemos estar juntos. Você hesita, eu recuo. 

Jack Daniels, uma dose. Quando ela pede o garçom deixa um chorinho. Eu acompanho, e queremos acreditar que essas doses são cortesia da casa. Hoje o bar fecha mais cedo, por que não continuar bebendo em outro lugar? Podemos comprar uma garrafa pelo preço dessas doses, de fato. Já no meio da rua o garçom nos aborda trazendo minha mascara...você esqueceu. Nossa quanta consideração dele... não me lembro seu nome.. ela lembra. Ela tem uma memoria prodigiosa. Porém sua mascara tinha ficado para trás, o que a faz retornar para o resgate. Enquanto teclo umas mensagens no whats, ela retorna mancando... Nossa meu, levei um rola na entrada do bar.. uma garota trombou em mim e eu cai no chão, nossa que mico! Ainda bem que você não viu

"Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado –
eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo – pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
Paramos em um carrefour e pedimos uma garrafa de Jack, por favor. Não tem, pode ser o Black Label. Ela se abraça a garrafa e esperamos um uber que não chega nunca. Enquanto estamos ali esperando o tal uber, nos agarramos fugindo da noite fria. Meu, por que não pegar o metro? Esta tão silencioso que pensamos ser de madrugada, mas é só dez da noite. Chegando no metro, ela aborda uma senhora e diz que eu dei umas porrada nela, coitada, até ralou a perna. A senhora, que estava sóbria, acreditou e me olhou chocada enquanto eu ria. Ela explicou, implorou para que a senhora entendesse que ela estava brincando, mas sabe como é, talvez ela estivesse pedindo ajuda disfarçando com uma piada.. quem sabe? A senhora deixa o vagão olhando para trás preocupada. 

Essa é uma noite que não estava nos planos. Mas ela já aconteceu, várias vezes. Enquanto caminhamos de braços dados eu penso que isso não vai acontecer de novo, que algo dará errado e que ela irá sumir. 
Quando olho seus olhos claros sob a luz amarelada, me parece que tudo que está acontecendo ali é apenas em parte meu e que a peça ancestral do desencontro não pode parar. Posso me apaixonar, não gostar, enrolar, desamar, curtir, nada importa.  

Gostaria de dizer isso a ela... eu sei que isso (não) vai se repetir. Urano quadratura Vênus, um afeto que se manifesta em dias específicos, para encontrá-la basta consultar as efemérides. Ando acostumado às conjunturas astrológicas, às mãos que se apertam como náufragos no espaço sideral. Aqui me lembro do Bill Murray no feitiço do tempo, e me permito relaxar, deixar rolar... Não conseguirei mudar nada, amanha irei acordar em minha casa, limparei a merda de uma gata abandonada que não me pertence, comprarei pão e seguirei lendo minhas coisas. 
"É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
Obrigado Wisława Szymborska por sua poesia e por compartilhar conosco essa loucura que é viver.

Poesia A vida na hora - Poemas pg.135

 


  


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