A morte bidimensional

 



"Pesa sobre a terra com toda a sua base, mas termina num ponto, e esse ponto é o limite entre ser e não-ser. Tudo é relativo na vida, tudo é absoluto na morte;" Giulio C. Argan

As vezes acredito que a vida seja eterna como as partículas do big bang. Ela acompanha o universo sombrio se divertindo com as pedras frias e floresce de tempo em tempos, aqui e ali.

Freud disse que existe uma pulsão de morte e que a vida anseia em retornar para o inanimado, por isso nos matamos de variadas formas, apaixonadamente. Porém, nunca vi a vida vir do inanimado.. como pode ela retornar para onde nunca esteve? Empiricamente a vida vem de outra vida, então por que acreditarmos que a vida veio do inanimado? Não seria o ouroboros uma metáfora mais adequada para a vida e sua reprodução infinita-circular? Pedras não se reproduzem, elas dançam no espaço até sua desintegração, seu destino é um linear caminho em direção à poeira cósmica. Seria isso a tal entropia? A vida é inexplicavelmente anti entropica, ela envelhece e vira comida de outros pequeníssimos seres. Poderia dizer que nós nunca morremos, viramos comida.

Proponho que esqueçamos a morte, ela não existe desse jeito. 

No lugar da morte, existe uma rede infinita de vida que se devora e se reproduz, perpetuando redes de intenções, toques e anseios. Enquanto acreditamos que a morte é o fim, seguiremos tentando não morrer. Com a ideia de morte vem a utilização da morte, sua instrumentalização. Essa morte instrumentalizada é o coração de nossa civilização. A geometria fria e melancólica da morte nos seduz porque aponta para um ideal fixo como uma estrela no céu, a ponta superior da pirâmide - a síntese de todo ideal.

Essa ponta oblitera toda multiplicidade vital, esmaga e consome nossas melhores forças, sacrifica tudo no altar do nada.

Enquanto estamos lutando contra a pandemia, seguimos nossa marcha em direção a exaustão de nossos recursos naturais. Enquanto lutamos contra a morte, avançamos para seu seio. Seguindo o comentário de Argan sobre Canova:

"a forma não é a representação (isto é, a projeção ou o duplo) da coisa, mas é a própria coisa sublimada, transposta do plano da experiência sensorial para o pensamento."  

Engraçado que para Canova o ideal era um sarcófago de mármore cuja entrada consome mulheres, velhos e crianças. Todos eles construídos em mármore para que o espontâneo vital possa ser absolutizado/idealizado. O vazio negro da entrada é a boca da morte sombria, bidimensional e estéril. A síntese genial do escultor se esforça para exprimir ideal e morte juntamente com o movimento da vida e suas variáveis. Essa escultura me diz que a morte e o ideal se entrelaçam em um absoluto bidimensional porque racionalizamos e cortamos a vida de seu ciclo, esse sim verdadeiramente absoluto. 

A morte como corte que projeta a multiplicidade em um único ponto absoluto é a morte mecânica, isolada, matéria prima de nossos medos. Temos medo de nos tornar um ponto absoluto, isso seria o destino das pedras, não o meu... eu gostaria de uma cama quentinha e uma boa companhia. 

"O que mais me marcou ... Para toda a vida... Isso foi no primeiro ano, estávamos em retirada... Eu vi - nos escondemos atrás de uns arbustos - como um de nossos soldados correu para cima de um tanque alemão e começou a bater com a coronha na lataria. Ficou batendo, gritando e chorando até cair. Até os fuzileiros alemães atirarem nele."  Svetlana Aleksiévitch - A guerra não tem rosto de mulher

Essa lataria alemã resume o que se construiu com o ápice de nossa engenharia no início do século XX, e quando vejo pessoas formidáveis analisando a conjuntura contemporânea eu tenho a impressão de ver o soldado russo dando coronhadas na superfície de metal. A pirâmide assimilou milhões de vidas, e esse é o modelo de todos os esquemas de poder que estão a disposição em nosso planeta. A morte assim desenhada permite aos líderes construírem uma civilização ideal e perfeita, o que me faz crer que todo ideal é construído sobre o traçado absoluto da morte.

Sendo esta morte bidimensional o instrumento majoritário de um poder absoluto, não seria esta ideia justamente o calcanhar de aquiles do modelo de racionalidade que sacrifica o planeta para construir um ideal?

Vou fazer uma longa citação do livro Mortais, de Atul Gawande, um cirurgião que trabalha com cuidados paliativos:

"A ansiedade de Peg diminuiu consideravelmente conforme os desafios ficavam sob controle. Ela passou a sonhar mais alto. 'Estava focada na possibilidade principal', contou-me Martin mais tarde. 'Chegou a uma visão clara de como queria viver o resto de seus dias. Ficaria em casa, dando aulas.' 

Foram necessários planejamento e grande habilidade para tornar cada aula possível. Deborah ajudou-a a aprender como ajustar os medicamentos. 'Antes de cada aula, ela tomava uma dose adicional de morfina. O segredo era lhe dar o suficiente para que ficasse confortável para dar aula, mas não tanto que a deixasse grogue', recorda Martin.

Segundo ele, contudo, 'era quando estava se preparando para uma aula e durante os dias seguintes que se sentia mais viva'. Peg não tinha filhos e seus alunos preenchiam aquele espaço. E tinha algumas coisas que queria que soubessem antes que ela partisse. 'Era importante para ela poder se despedir dos alunos queridos, de dar os últimos conselhos a seus alunos'.

Ela viveu por mais seis semanas após ter deixado o hospital e começado a receber os cuidados paliativos. Hunter teve aulas durante quatro dessas semanas e ainda houve duas apresentações finais: uma com ex-alunos de Peg, artistas talentosos de todo país, e a outra com alunos de então, todos estudantes do ensino fundamental e médio. Reunidos em sua sala de estar, tocaram Brahms, Dvorak, Chopin e Beethoven para sua adorada professora.

A sociedade tecnológica esqueceu-se do que os estudiosos chamam de dying role, 'o processo de morrer', e de sua importância para as pessoas com a aproximação do fim da vida. As pessoas querem compartilhar memórias, transmitir sabedorias e lembranças, resolver relacionamentos, estabelecer seu legado, fazer as pazes com Deus e certificar-se de que aqueles que estão deixando para trás ficarão bem...Esse processo de morrer está entre os mais importantes da vida, tanto para a pessoa que está morrendo quanto para aqueles que deixa para trás. E se for verdade, a maneira como negamos isso às pessoas, por obtusidade ou negligência, é motivo de vergonha eterna. Repetidamente, nós, na medicina, infligimos profundas feridas no fim da vida das pessoas, depois ficamos alheios aos danos causados."

Neste livro ele relata como mudou sua abordagem com os pacientes no fim de suas vidas e de como transformou sua postura de um especialista/informativo/impassível para fazer perguntas do tipo: "se o seu tempo se tornar mais curto, o que é mais importante para você?" A maneira como temos vivido as mortes pela pandemia do Covid expressa o extremo oposto desse relato: mortes anônimas e solitárias em leitos de UTI, ou em algum isolamento residencial. A morte bidimensional, numérica e estatística infesta os noticiários e nos entorpece, já não faz a menor diferença.

Queremos que a vacina se apresente como uma forma de contornarmos o inelutável fato de que nosso estilo de vida está no fim, nosso modo de civilização está morrendo. Como fazer um processo de morrer com uma civilização? Quais seriam as lições e conselhos? Uma certeza é que não estamos legando um mundo melhor para nossa posteridade. Isso me lembra do filme Céu da meia noite, que retrata um fim de mundo onde tripulações buscam planetas habitáveis, bem parecidos com outros filmes do gênero. O que me faz pensar nessa fixação pela fuga, pela incapacidade de lidar com nosso planeta. Por que não gastar essa energia para não foder o que temos? Estamos tornando nosso planeta inabitável enquanto procuramos um planeta habitável... até onde irá essa incoerência? Estamos fixados na construção da grande pirâmide mortuária, não podemos mais viver nesse planeta, ele já está destinado para as múmias. Se quisermos viver, teremos que achar outro planeta. 

A morte não é bidimensional, nem a vida tem nada que ver com um ideal... nós nunca morremos de fato, e essa ideia de morte é a base de toda forma de poder que atua para nos petrificar.    

  

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