Origens de nosso desencanto



"Porque dirão os gentios: Onde está o seu Deus?
Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou.
Os ídolos deles são prata e ouro, obra das mãos dos homens.
Têm boca, mas não falam; olhos têm, mas não vêem.
Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram.
Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta.
A eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos os que neles confiam."
Salmos 115:2-8

"O ferreiro, com a tenaz, trabalha nas brasas, e o forma com martelos, e o lavra com a força do seu braço; ele tem fome e a sua força enfraquece, e não bebe água, e desfalece.
O carpinteiro estende a régua, desenha-o com uma linha, aplaina-o com a plaina, e traça-o com o compasso; e o faz à semelhança de um homem, segundo a forma de um homem, para ficar em casa.
...
E nenhum deles cai em si, e já não têm conhecimento nem entendimento para dizer: Metade queimei no fogo, e cozi pão sobre as suas brasas, assei sobre elas carne, e a comi; e faria eu do resto uma abominação? Ajoelhar-me-ei ao que saiu de uma árvore?"
Isaías 44

A maneira como a Bíblia retrata os adoradores de outros deuses e suas imagens é repleta de intolerância e ironia, contendo uma mensagem que desqualifica o culto de outros deuses pela "dessacralização" de seu ritual. Para aqueles que nasceram em um berço cristão, esta desqualificação parece quase natural, uma afirmação de como o cristianismo e seu Deus são excepcionais em vista dos outros cultos, relegados a posição de párias e bárbaros. Dessa forma, reduzimos a história e religiões de vários povos a uma espécie de primitivo estúpido, e repetimos isso de forma tão corrente, que chega a ser uma coisa banal, um simples prelúdio para adoração do Deus único e verdadeiro. 

Neste trecho do livro O Preço do Monoteismo, Jan Assmann expõe essa desqualificação sistemática das outras religiões operada pela Bíblia:

"A atividade descrita ou o modus operandi é alienado ao ponto em que as pressuposições particulares que o fazem significativo são intencionalmente desconsideradas. Neste caso, pouca atenção é dada ao fato de que uma peça de madeira nunca poderá ser adorada por si mesma como uma imagem divina, mas precisa primeiramente ser consagrada em uma elaborada cerimonia que o faz entrar em contato com o mundo dos deuses e o qualifica a ser o recipiente temporário do espírito divino. A redução de um objeto de culto a sua mera materialidade, quando ela só pode "funcionar" como tal em um contexto de uma semiótica altamente complexa, é uma manobra alienante que coloca todas as ações performadas em relação a ela sob a luz do absurdo." pg26

Essa manobra me pareceu tão safada, tão baixa, que eu comecei a pensar nos motivos que motivam essa luta iconoclasta na Bíblia. De acordo com Assmann, "as lendas egípcias, por contraste, representam os iconoclastas como leprosos", revelando que algumas narrativas egípcias contam uma história invertida do êxodo hebreu, o que levantou várias hipóteses sobre como a lei mosaica é um negativo das leis e valores egípcios. Essas hipóteses revelam um esforço dos escritores bíblicos no sentido de eliminar a herança egípcia de sua posteridade, ou seja, o que seria a raiz do monoteísmo iconoclasta é, na verdade, um apagamento da herança cultural egípcia pela legislação mosaica.

Quando Moisés nega os vários deuses egípcios em favor do Deus único e invisível, ele inaugura uma "contra religião" que dessacraliza o universo egípcio em favor de um absoluto ideal intolerante com relação a qualquer outro deus. Esse "apagamento" que ironiza e aliena um culto de sua história me parece muito parecido com uma perspectiva materialista científica que afirma ser o mundo e universo um espaço "desencantado", passivamente disponível para o cientista e seu laboratório, sendo este o único detentor de autoridade valida para possuir a verdade. Existe nessas posturas uma raiva desconectada de sua origem, uma vontade de submeter e reduzir o mundo e as culturas diversas à vala comum do irracional. 

No texto Reativando o animismo, Isabelle Stengers busca uma ponte para reabilitar nossa relação com as coisas, perdida, para ela, com o aparecimento de uma ciência que se especializou em separar e catalogar...

"Recuperar significa recuperar a partir da própria separação, regenerando o que a separação em si envenenou. Assim, a necessidade de lutar e a necessidade de curar, de modo a evitar que nos assemelhemos àqueles contra os quais temos de lutar, tornam-se irremediavelmente aliadas. Deve-se regenerar os meios envenenados, assim como muitas de nossas palavras, aquelas que – como “animismo” e “magia” – trazem com elas o poder de nos tornar reféns: você realmente acredita em...?"

Observem uma citação que Isabelle faz de um autor chamado David Abram e sua reação ao ver uma pratilheira de tradições sagradas em uma livraria:

"Não é de se admirar! Não é de se admirar que nossas civilizações tão sofisticadas, repletas de conhecimento acumulado de tantas tradições, continuem a aplainar e desmembrar cada parte da Terra que respira... O que aconteceu foi que passamos para as páginas todas essas sabedorias, apartando efetivamente esses muitos ensinamentos da Terra viva, que antigamente os sustentava e encarnava. Uma vez inscritas nas páginas, todas essas sabedorias passam a parecer ter uma proveniência exclusivamente humana. Fixou-se a luz que antes provinha da dança da lua entrando e saindo das nuvens, ou do brilho da luz solar sobre a superfície ondulada do vento batendo nos lagos das montanhas, em uma forma imutável."

As analises de Jan Assmann sobre a origem do monoteísmo revelam como nossos principais valores e mitos foram construídos sobre o solo de uma negação. Tal negação iconoclasta também foi incorporada, ao meu ver, ao método científico moderno e seu esvaziamento ontológico do mundo, através da matematização e do método científico. Hoje, apesar de nossa profunda desconexão com a vida e com o mundo, buscamos retomar o contato perdido através de retiros espirituais e uma economia sustentável, o que me lembra os suplícios de Tântalo. 

Sempre que eu comento algo do tipo: "eu acredito em Deus" ou "acho bruxaria algo legal", começa uma série de questionamentos sobre a realidade ou veracidade, provar que tal coisa existe ou que funciona... o que me faz pensar que para eu poder ter minhas crenças validadas elas precisam pagar entrada para a cultura secular europeia monoteista. É muito cansativo abrir mão da cultura hegemônica quando ela, na verdade, se fundamenta em uma contra religião avessa a qualquer possibilidade de diversidade. Aqui me lembro de um amigo que me perguntou a diferença entre mitologia e religião e acabamos falando da sabedoria indígena, ai ele me disse que pensava que o índio explicava a chuva com base em um deus específico por não saber a física do ciclo da água, ao que eu respondi que não era bem assim, pois para o índio essa mecânica não lhe interessa, enquanto que o Tupã, ou seja lá qual deus ele reverencie pela chegada da chuva, possui uma relação orgânica com sua vida e tribo. Nós precisamos parar de universalizar nossa postura cultural, somente por acreditar que ela seja racional.

Finalizo com mais uma citação de Isabelle Stengers:

"A magia ultrapassa qualquer versão dessa narrativa épica. E é precisamente por isso que as bruxas neopagãs chamam de “magia” o ofício ao qual se dedicam: nomeá-lo dessa forma, dizem elas, é em si um ato de magia, já que o desconforto que ele cria nos ajuda a perceber a fumaça pairando nas nossas narinas. Mais do que isso: elas aprenderam a lançar círculos e a invocar a Deusa – Ela que, dizem as bruxas, “retorna”, Ela  A quem se deve agradecer pelo acontecimento que as torna capazes de fazer o que chamam de “trabalho da Deusa”. Ao fazê-lo, elas nos colocam à prova! Como aceitar a regressão ou a conversão a crenças sobrenaturais? A questão aqui, contudo, não é nos perguntarmos se devemos “aceitar” a Deusa que as bruxas contemporâneas invocam em seus rituais. Se disséssemos: “Mas a sua Deusa é apenas uma ficção”, sem dúvida elas sorririam e perguntariam se somos daquelas pessoas que acreditam que a ficção não tem poder."  

  

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