Se o amor fosse sólido, comê-lo-ia

O amor líquido escorrega em Fleabag

A torre é normalmente uma carta temida nas tiragens do tarô, isso porque ela simboliza uma ruptura iminente, um trauma, um acidente, algo que o consulente não terá como evitar e que o atingirá com a rapidez inesperada de um raio. Interessante notar que a carta retrata um casal despencado do alto de uma torre atingida por um raio, por que será que existe nessa carta um casal despencando?

Queremos que nossas relações possuam a solidez e a previsibilidade de um fluxograma. Como seria legal poder transar com aquele ali, conversar carinhosamente com aquele outro, receber um sexo oral daqueles e ir dormir tranquilo... ah os relacionamentos líquidos! Seria pedir demais poder customizar os amantes e criar um rodízio que acompanha as fases da lua? Quando o amor terá um cardápio onde poderemos escolher no dia o deleite mais adequado ao momento? Que tal um sexo apaixonado hoje?

Os "relacionamentos de bolso" visam ocupar este nicho de mercado, fornecendo os serviços que indiretamente desejamos, porque ainda não somos honestos o suficiente com nós mesmos para admitir. 

"Uma relação de bolso bem-sucedida, diz Jarvie, é doce e de curta duração. Podemos supor que seja doce porque tem curta duração, e que sua doçura se abrigue precisamente naquela reconfortante consciência de que você não precisa sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-la intacta por um tempo maior. De fato, você não precisa fazer nada para aproveitá-la. Uma "relação de bolso" é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade." Amor líquido pg. 37

A coisa engraçada de entrar no cardápio humano é ter que cumprir a exigência sem o qual o cardápio não funciona: precisamos fingir que não estamos em um cardápio humano. Isso quebra o glamour do encontro, tira toda a magia do negócio. Seguimos o script e nos encontramos, claro que devidamente brifados por Bauman, sabemos que estamos liquefeitos e que aquilo ali é só um prazer momentâneo, tirar aquela carência da quarentena interminável, sentir o cheiro da rua com alguém interessante. Nessa coisa de abraços e conversas interessantes as coisas esquentam e matamos aquela vontade de intimidade amorosa que nos fazia tanta falta no meio dessa pandemia. 

Os problemas começam quando decidimos romper com o contrato das relações de bolso e acabamos nos envolvendo, gostando daquela pessoa que inicialmente estava ali apenas disponível em um nível diria.. número 3 do fluxograma (com certeza existem algoritmos que fazem isso por nós.. aleluia!). Mas o lance todo não é achar alguém que você goste? Opa, ai eu creio que chegamos na fatídica torre. A figura da torre sempre remete a famosa torre de Babel, aquela que Deus derrubou porque os homens estavam convencidos demais, estavam querendo ser igual a Deus... novamente, como aconteceu com Eva e Adão no paraíso, Deus não ficou feliz com a autonomia humana e podou nossa aventura de forma a confundir as línguas daqueles que ali viviam, a coisa deve ter virado um culto de igreja pentecostal...muitas línguas estranhas. Quando queremos controlar o negócio, tirar Deus do esquema, Ele aparece e derruba o lance todo. 


Porém, não desistimos nunca!

"Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente sóbrio. Lembre-se: nada de "amor a primeira vista" aqui. Nada de apaixonar-se... Nada daquela súbita torrente de emoções que nos deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. (...) Não se deixe dominar nem arrebatar, e acima de tudo não deixe que lhe arranquem da mão a calculadora. (...) A conveniência é a única coisa que conta, e isso é algo para uma cabeça fria, não para um coração quente (muito menos superaquecido)." pg 37

Caso alguém se apaixone por você, use a "responsabilidade afetiva". Ela serve para lidar com algo que nós mesmos não temos a menor ideia do que fazer... os afetos (dos outros). Caso nos apaixonemos, é só escolher pessoas cuja reciprocidade seja improvável (aquele gentleman que não reclama da camisinha ou o padre Fabio de Melo). Contemple a versão pós moderna do Odisseu amarrado ao mastro esperando as sereias, enquanto seus marujos remam com os ouvidos tapados. 

"Responsabilidade afetiva é assumir o seu papel quanto às expectativas criadas em uma relação. Afinal de contas, não é certo estimular um relacionamento, dizer que ama a outra pessoa e planejar um futuro com ela para, do dia para a noite, decidir que quer terminar." Google

Não crie falsas expectativas em uma relação de bolso, a não ser que você esteja interessado e assim autorize um "próximo passo" que teoricamente mudará seu status para uma relação, digamos, menos líquida. Agora, como saber o que a outra pessoa fará com essa honestidade heroica? Será que ela aceitará nosso investimento afetivo apenas para nos colocar no pior dia da semana? Adentramos o cenário escorregadio da sagacidade alheia e percebemos que aquela pessoa bacana, é uma pessoa que muita gente acha bacana. O adepto do relacionamento líquido provavelmente foi arrastado pelo asfalto das paixões - um doce ritual de iniciação amoroso. Assim, a possibilidade de reviver cenários de miséria e submissão afetiva nos faz calcular melhor o ponto de corte das relações de bolso e manter a paixão do outro lado da cerca. Sorry (que bom, ufa!) não é recíproco. Responsabilidade afetiva naqueles que parecerem muito apaixonados, curtir os que disfarçam e nunca se apaixonar... amém.    

Contemplem um case de relacionamento líquido no mundo grego antigo:

"Eis que o convido para jantar, muito simplesmente à maneira de um amante que prepara uma cilada ao seu bem-amado..." para conseguir obter dele tudo o que ele sabia. Mas em vão, mesmo depois de todos se terem ido e de Alcibíades se ter deitado no leito de Sócrates, sob a sua capa, nada mais aconteceu "do que se tivesse dormido com o meu pai ou com um irmão mais velho".  

E Sócrates: - Agatão, vê se me defendes! Que o amor deste homem se me tornou um não pequeno problema. Desde aquele tempo, com efeito, em que o amei, não mais me é permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, serão este homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinárias, insulta-me e mal retém suas mãos da violência. Vê então se também agora não vai ele fazer alguma coisa, e reconcilia-nos; ou se ele tentar a violência, defende--me, pois eu da sua fúria e da sua paixão amorosa muito me arreceio.        O Banquete

Aqui temos fortes sinais de que Sócrates era um boy lixo que usava a sua filosofia para seduzir jovens indefesos, usa-los e jogá-los fora depois que esse amor se tornasse impertinente. Pobre Alcibíades, estava numa relação de bolso e não sabia... tsc tsc. Tivesse ele lido Bauman, teria sofrido menos. Imagino que a verdadeira causa do processo jurídico que levou Sócrates à cicuta deva ter sido motivado por um coração partido, veja o que ele diz sobre quem o denunciou: "Eu próprio, Eutífron, não conheço muito bem o homem, pois me parece ser alguém jovem e desconhecido (só mais uma transa anônima, aff). Mas o chamam de Meleto...de cabelo liso e não muita barba - e nariz adunco..." Acusação: falta de responsabilidade afetiva.

Outra alternativa mais segura é amar o trabalho, nos doar integralmente ao dever e a obrigação - retorno garantido in cash. Essa expressão de amor tem o benefício de nos esfolar e expurgar culpas, aliviando nossa consciência tortuosa no fim do dia. Como não curtir esse prazer pequeno burguês de realizar tarefas impossíveis, carregar pessoas incompetentes nas costas e ter aquela agradável sensação do dever cumprido? Sem contar que é difícil curtir alguma coisa minimamente erótica em um lugar onde morrem milhares de pessoas todos os dias por negligência e sadismo, onde outros milhares estão sem seus empregos. Sair e curtir um encontro despretensioso pode virar um filme de terror biológico... evitemos.

Sonho

Deixe penetrar a raiz
No centro de tua alma
Aspira a seiva
Da fonte infinita
De teu inconsciente
conserva teu verdor (be evergreen)

D W Winnicott

Me parece que o maior problema em tempos de amores líquidos é essa coisa de "aprender" com os traumas, pois quando aplicamos aos relacionamentos um modelo de aprendizado "tentativa e erro" acabamos inibindo nossa capacidade de sentir. O fato de relacionarmos o amor sentido com a tragédia causada nos deixa ariscos e acabamos inibindo nossos afetos para nos prevenir de sofrimentos posteriores. O preço que pagamos pelo controle dos afetos não é explicitado no momento em que assinamos o contrato e me pergunto se alguém consegue planejar algo do tipo: "vou apaixonar semana que vem". Podemos cortar relações antes que nos decepcionem, ampliar as tais relações de bolso, mas na medida que apostamos no controle, vamos multiplicando apatia. 

Os afetos se enganam, se iludem, porém não se enfraquecem. Lembra-se da última vez que você se apaixonou? A tecnologia dos afetos é de uma aposta contínua, uma potência cujo único objetivo é atravessar a estratosfera da realidade cínica. Nesse caso não é importante o trajeto certo, mas o alcance do impulso. As pessoas estão cansadas de relações ruins, erradas, turbulentas, abusivas, etc, porque apostaram no controle. Onde estão os afetos? Longe e esquecidos. Não existe aprendizado "a frio" no amor e eu diria que conseguimos calibrar nossos afetos na medida em que os sentimos, ao ponto de podermos "cavalgar" nossas paixões.

Se apaixonar não significa se submeter, antes, é acessar os recônditos dos amores impressos em nossa carne sensível... ao ponto de podermos contemplar e interagir com essa história arcaica.   

Quem amou e foi esmigalhado por uma desilusão não precisa de um telecurso de responsabilidade afetiva, já que nossas dores são a ancora de toda empatia. Quem abre o coração para as relações, consegue atualizar suas idealizações na forja dos encontros imponderáveis com o outro. Esse é o único caminho para alcançar amores possíveis e respeitar os sentimentos daqueles que compartilham conosco desse encontro corajoso com o desconhecido. O amadurecimento afetivo só é alcançável pelo atravessamento das desilusões, e, como já disse, não existe "aprendizado" nos moldes de uma racionalidade calculante aqui. Estar em igualdade de condições na era dos amores de bolso é estar presente na arena do amor. Aqui respeito apenas quem tem cicatrizes..rs 

Fico por aqui com a poesia Amar, de Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



 




 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria