Sem teto da ancestralidade

Diógenes - um sujeito com dificuldades de encontrar seu outro

Uma das minhas primeiras lembranças da vida é de uma tarde em que tinha ido buscar refrigerantes com meu avô japonês, devia ter uns 4 anos. Passando por um parquinho que estava instalado na praça da cidade, uma pequena e pacata cidade chamada Roseira, eu quis andar em um brinquedo e pedi para meu avô deixar eu andar, acho que era tipo um carrinho de montanha russa. Não me lembro bem do brinquedo, mas lembro mais dos operários que faziam a manutenção nos brinquedos. Eles me olhavam rindo, meu avô também, e eu lá sentado no carrinho desligado, pensando... e ai vocês não vão ligar o brinquedo? Como eles não paravam de rir eu comecei a me sentir envergonhado - essa vergonha é o tema de nossa viagem de hoje queridos companheiros de isolamento social.

Meu avô, o seu Tadao, tinha três dentes, dois em baixo e um em cima. Ele falava japonês e eu não entendia nada. Ele sempre ria e cheirava pinga, isso talvez explique porque tenho uma sensação terna quando sinto o cheiro de velho barreiro. Nós os visitávamos com uma frequência regular e minha mãe não gostava de ir vê-los, as relações familiares nunca foram o forte lá em casa. Me lembro que havia biscoitos, colocados em um recipiente de lata. Minha tia via fórmula 1, e eles faziam um churrasco de bife com cheiro verde que eu achava gostoso. Tinha um cachorro chamado Ringo que escalava e pulava o muro da casa, me derrubava de vez em quando, mas eu gostava dele. Roseira tinha um centro com chafariz que eu gostava de brincar, corria para cima e para baixo. Para mim estava bom.

Quando era criança, na maioria das vezes em que eu precisava interagir com estranhos era chamado de "japa" "japinha" "japonês" e todos riam. Creio que o Faustão inaugurou toda uma tradição da humilhação japonesa no Brasil que deve ter causado constrangimentos incomensuráveis. Se pudéssemos medir empiricamente constrangimento, isso seria uma coisa que eu gostaria de medir... quantas pessoas asiáticas foram constrangidas por esse tipo de tratamento propagado por Faustão? Ê japonês! Abre o olho há há há. Um dia desses eu comprava uns cacarecos para minha casa em uma loja de 1,99. O dono estava no caixa, um senhor chinês "simpático", ele tentava interagir com um grupo de velhinhos que ironizava o fato de ele ser chinês, do vírus chinês, da industria ching ling, etc. Ele se dizia apoiador de Bolsonaro e de Dória, repetia cada vez mais alto que era conservador também. Os velhos riam... ele também. 

"a propria boa vontade do estranho vira-se contra ele; seu esforço de assimilação isola-o ainda mais, realçando mais do que nunca sua estranheza e fornecendo a prova da ameaça que contém"  Bauman

As pessoas me perguntam se eu falo japonês, não, não falo. Nossa mas você também tem Schneider em seu nome? Fala alemão? Também não. A impressão que fica é que eu cai dos trilhos da ancestralidade. Tudo que remete ao japonês em minha vida são lembranças desconexas e constrangedoras, risos compulsivos. Meus avós não gostavam de minha mãe porque ela não era japonesa e provavelmente não deviam ter muita simpatia pela minha pessoa, por tabela. Acredito que meu avô não queria ter vindo ao Brasil, por isso tratou os filhos de uma forma tenebrosa, como uma forma de vingança talvez? Meu pai passou a infância na roça, tomava refrigerante uma vez por ano e dizia que furava a tampa com um prego para poder estender o prazer da degustação. Roubava melancia do vizinho e se alimentava de forma precária. Hoje eu pergunto para ele, pô pai você não morava em uma roça diacho? Não tinha vaca, galinha caipira, sei lá? Nada. Não tinha nada! 

Esse vazio me intriga, dá vontade de voltar no tempo e perguntar para a família do meu avô o que ele pensava da vida antes de vir para o Brasil. O que ele veio fazer aqui? Por que tratou seus filhos como bichos? Todos eles carregam marcas do passado, submetidos a um treinamento de insensibilidade que não repercute o uso de uma linguagem, quanto mais de afetos. São todos sobreviventes do seu Tadao.

Meus avós maternos tiveram mais participação na minha vida e de minha irmã. Eles nos visitavam, minha vó preparava umas coisas boas. Eu pedia para ela fazer coxinha e ela fazia, nossa como eu ficava feliz. Isso foi muito tempo atrás. Meu avô falava alemão, lia um jornalzinho toda manhã para não deixar a língua enferrujar. Zô isso, Zô aquilo.. Tinha o Nuque, um pastor alemão no vizinho que latia no muro do quintal todos os dias. Eu ficava com ele no quintal fazendo buracos, usando as ferramentas que ele tinha no rancho do quintal. Talvez essa cavar aleatório do quintal dos meus avós tenha moldado meu caráter intelectual, ae fico cavocando Bauman, Nietzsche, psicanalise..rs No sitio da minha tia eu me tornei mais ambicioso, fazia umas covas grandes que meu avô usava para enterrar lixo.. ele gostava dos meus buracos. 

Relembrando essas coisas eu penso que a união dos meus pais foi uma coisa inusitada. Minha chegada nesse planeta foi uma coisa estranha, sei lá. Parece uma "festa estranha com gente esquisita", sinto que todos estavam lá ao meu redor, porém o parque estava fechado. 

"Com efeito, definir o problema do desestranhamento, da domesticação do estranho, como uma questão de decência e industria do esforço do estranho para a assimilação através da aculturação é reafirmar a inferioridade, a indesejabilidade e o deslocamento da forma de vida do estranho; é proclamar que o estado original do estranho é uma mancha a ser removida; é aceitar que o estranho é congenitamente culpado e que cabe a ele expiar e provar seu direito a absolvição."      Bauman  

Ser descendente de italianos, alemães e japoneses parece uma suprema ironia, uma espécie de Adão do eixo do mal que está cagando para um nacionalismo, justamente porque nunca entrou em meu horizonte. Na minha infância eu era "japa", fazia um esforço para entender que me viam como um japonês, identidade da qual eu não partilhava. Brincava e ria com quem me sacaneava, levava na boa para a galera não encarnar, essa é uma lição que se aprende vendo que as pessoas que sofriam eram mais estigmatizadas, porque permitiam um gozo sádico que eu evitava proporcionar. Eu não estranhava ter um avô de olhos azuis, que usava boina e tirava a pestana depois do almoço, e ao mesmo tempo, ter um avô que falava japonês e vivia bêbado/rindo. Nunca estranhei ser estranho. Mas isso incomoda as pessoas, afinal, elas precisam ter um horizonte familiar para descansar os olhos. 

Sou um mestiço no Brasil, o que isso quer dizer? É carregar culpas ancestrais, a precariedade afetiva e identitária de avós e bisavós infelizes, desconectados de suas histórias e comunidades. Sou aceito? Não me sinto acolhido por meus ancestrais nem pela comunidade nas quais eu vivi. Mas alguém é? Existe algo como uma comunidade coesa, a qual eu possa ser assimilado? Creio que não. Existem comunidades alemãs no sul, japonesas em São Paulo, o que eu acho muito legal, para quem participa e tem essa conexão. Quando pergunto para as pessoas sobre ancestralidade, elas as vezes nem sabem de quais nacionalidade/raça descendem, por que então deveríamos nos importar com nossa ancestralidade?

O mito da mestiçagem brasileira como base de uma sociedade mais tolerante é uma falácia. Aqui existe muito ódio para destilar sobre os estranhos, sejam eles quem forem. Não ter um solo seguro não torna as pessoas necessariamente tolerantes, pode ser exatamente o oposto. Alias, essa fragilidade identitária nos encaminha para conflitos enormes, sendo o retorno de conservadorismo uma faceta da fobia despertada pela "revolução" em curso nos costumes. 

O fato é que construímos nosso país sobre um cemitério indígena, e isso é um detalhe importante. Hoje sofremos nossos fantasmas ancestrais, silenciosos e violentos. Quando eu ouço uma pessoa chamar a outra de esquerdista, direitista, eu entendo que as pessoas precisam de rótulos para se guiar em um mundo colapsado do ponto de vista do lugar comum e das tradições. Os nomes precisam ser violentos, rotulantes, estigmatizantes, para poder significar alguma coisa para pessoas que não possuem consistência ancestral. Eu não tenho o consolo de uma concha existencial, sou como um polvo enrolado sobre mim mesmo, procurando fendas, algas, conchas abandonadas, elaborando dúvidas obscuras que me permitam fugir... desaparecer dos olhares enquandrantes do outro.     

"Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos.

Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas no novo mundo, logo me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações... Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu.

... qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada." Franz Fanon

Minha tese é que nossa incapacidade ontológica é, na verdade, uma incapacidade frente a uma concepção de mundo e identidade nacionalista eurocêntrica do sec. 19. Quem sabe esse hardware miscigenado não seja a ponta de lança da era de aquário? Terence MCkenna disse que o animal que representa o sec. 19 é o cavalo, pela potência da máquina a vapor, enquanto a águia representaria o sec. 20 pela agilidade e pelo vôo como domínio tecnológico do ar. Qual é o animal do séc. 21? O polvo! Vejam que coincidência. 

"reconhecendo uma imagem da alma como o do polvo é permitir que um tipo de beleza estranha e alienígena adentre nossas vidas" Terence MCkenna

Quando converso sobre as minhas maluquices de forma livre, percebo um olhar nas pessoas, um olhar de alguém que me olha da janela de sua confortável casa enquanto eu proponho os prazeres de se viver na rua. Paulo, calma ae...rs Ter um Urano no fundo do céu é nascer em um penhasco, rodeado de abismo. Me apoio em pedacinhos de solo rochoso, e vou pulando pelas beiradas.. engraçado não? 


Fico por aqui com uma citação de Chestov, feita por Bauman. Adoro o Bauman porque ele leu todo mundo e fez uma lista muito boa, me ajuda a ler menos. 

"Chestov reagiu com um assalto frontal ao que era (como se dispôs a provar) um incurável paroquialismo da própria busca do absoluto em geral e dos valores absolutamente superiores em particular. A busca pelos filósofos do sistema ultimo, da ordem completa, da extirpação de todo desconhecido e ingovernável deriva - declarou ele - da adoração de um terreno firme e seguro, de um lar certo, e resulta na redução do infinito potencial humano. Tal busca só pode degenerar em impiedosa exigência às possibilidades humanas.

...Enquanto a verdade for procurada pelo homem estabelecido, a maça da árvore do conhecimento não será comida. A tarefa só pode ser realizada por aventureiros sem lar, por nômades naturais"


*Terence MCkenna sobre os animais totemicos: "Our previous animal totems were chosen unconsciously and were rather unfortunate, I think: I take the totem of the 19th century to be, um, the horse, expressed as the steam engine. And the totemic animal of the 20th century is the raptor, the bird of prey, expressed as supersonic high-performance fighter aircraft, which is just, you know, the leanest, meanest machine you can get together these days. But these mammalian and avian images are too close to the rapacious heart of the primate inside us; embracing an image of the soul like that of the octopi is permission for a strange and alien kind of beauty to be let into our lives."

olha que bacana a ideia do polvo:

"Now notice what's happening with the octopi. There is no dictionary. Both parties are seeing the same thing because my body is my meaning. I become my meaning. And you behold the meaning I have become. I am like a naked thought. Not even a naked nervous-system. More naked than that. I am like a naked thought, in aqueous space, unfolding in time. I maintain this is why octopi eject clouds of ink: it's so they can have private thoughts."

e sim, eu vi o "my teacher octopus" no netflix, muito bom!

Comentários

  1. vim te ler, meu amigo. sempre vejo quanta entrega há nos seus textos e estou certo de que você escreve porque é preciso, não é? neste momento, isolado do mundo e tristonho diante do notebook, me sinto incapaz de comentar qualquer coisa além do acalento que senti enquanto te lia, ouvindo na minha cabeça sua voz familiar. espero que a gente se veja de novo em breve, depois que o mundo acabar de novo. ah, obrigado por compartilhar suas histórias de família. é uma parte que ainda não conheço muito bem. um abraço!

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  2. Obrigado por compartilhar, é enriquecedor.

    Penso que somos mais que nossa linhagem miscigenada e catequizada, somos seres que podemos ou não evoluir, depende da escolha de cada um como indivíduo de acordo com sua própria necessidade, essas escolhas podem afetar o todo..

    Quando nos libertamos de aprisionamentos psicológicos (crenças, valores, ideologias e culturas limitantes), estamos honrando nossa ancestralidade, por aqueles que não puderam ou não conseguiram fazer diferente do senso comum, libertamos também a nós mesmos e o vislumbre do que já fomos um dia, nesta ou em outra vida.

    Seres peculiares, sim, fora de padrões e da Matrix, são os que fazem a diferença na própria vida, na do próximo e as vezes em uma sociedade, assim como aqueles que nos inspiram (filósofos, escritores, cientistas, inventores..).

    Tudo ótimo ser diferente, na verdade "Bem aventurados os Estranhos!".

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  3. Obrigado pelo retorno queridos! Muito bom ouvir as suas impressões. Eu gostaria de expressar em meu texto um pouco de revolta contra a ancestralidade, justamente porque ela me habita negativamente... quase como um não dito. Gostaria de reunir meus ancestrais em um anfiteatro e falar ... olha, o processo não foi muito legal! kkkk vcs largaram uma bomba aqui e tá dando um trampo desarmar. Sim, eu sei que devemos ser gratos e buscar uma reconciliação com a ancestralidade, achei que isso rolou quando fiz a ayahuasca e estou tentando..rs

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