A cultura da privação

Rio de Janeiro - RJ - 20/04/2020 - COVID 19 - Coronavirus na cidade do Rio - Fila para sacar o auxilio emergencial dado pelo governo, na Caixa economica Federal, na Rua Marechal Deodoro, em Duque de Caxias, baixada fluminense - Foto Reginaldo Pimenta / Agencia O Dia

 "A criança ferida dentro de muitos homens é um menino que, da primeira vez que falou suas verdades, foi silenciado pelo sadismo paterno, por um mundo patriarcal que não queria que ele reivindicasse seus reais sentimentos. A criança ferida dentro de muitas mulheres é uma menina que foi ensinada desde os primórdios da infância que deveria se tornar outra coisa que não ela mesma e negar seus verdadeiros sentimentos, para atrair e agradar os outros. Quando homens e mulheres punem uns aos outros por dizer a verdade, reforçamos a ideia de que o melhor é mentir." pg.91 bell hooks

Desde as primeiras "horas clinicas" de minha formação em psicanálise eu notei que havia uma coincidência mórbida acontecendo na maioria das famílias: todas elas imprimiam em seus filhos condições traumáticas e incapacitantes do ponto de vista emocional. Não estranha o fato que boa parte do "método" psicanalítico consiste em reconstruir o panorama familiar, o que me parecia reconstruir a cena de um crime, ou de um choque automobilístico. O que nos levava a reencontrar pedaços abandonados e esquecidos dos organismos emocionais dos pacientes, dando-lhes uma oportunidade de revitalizar e rever partes importantes de sua vida emocional. 

Eu me questionava... por quê? Por que esse trabalho de reconstruir diariamente cenários de destruição afetiva? Eu me sentia um médico que se especializa em traumatismos e extração de balas, cenários de desespero e alta complexidade para impedir mortes, mas me ocorresse que o maior problema não eram os ferimentos e sim as origens daquele cenário de guerra. Por que pessoas são atingidas por balas diariamente? Por que famílias imprimem traumas afetivos profundos em seus filhos? Acredito que é parte da medicina e da psicanalise perguntar sobre os contextos e sobre a origem de seus objetos de trabalho.

Esse é o momento em que a psicanalise se torna uma análise da cultura, como gostamos de catalogar. E aqui retorno para Freud em seu principal texto desse ramo, O mal estar da civilização. Em uma interessante nota de rodapé ele afirma:

"O fato de ocultar ao jovem o papel que a sexualidade terá em sua vida não é a única recriminação que se deve fazer a educação atual. Ela também peca em não prepará-lo para a agressividade, de que certamente será objeto. Ao soltar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos."pg.106

Pensar que a educação que recebemos nos prepara inadequadamente é ainda muito otimista da parte de Freud, por isso escrevo-lhes este texto. 

Em tempos passados, todas as civilizações cultivavam praticas que visavam desenvolver certas aptidões em seus concidadãos para que posteriormente pudessem viver e servir a comunidade de acordo com os valores e crenças que habitavam a comunidade. Os espartanos lançavam seus filhos para desafios iniciáticos, assim como os índios fazem com seus jovens, permitindo que eles encontrassem por si mesmos qualidades importantes para o posterior convívio em sociedade. Estava claro que a criação familiar tinha limitações que a sociedade compensava com seus rituais e cerimonias de iniciação. 

Existia a noção clara de que a cultura estava ali para dar suporte ao indivíduo, tendo em vista que seus recursos individuais não eram suficientes para forma-lo para a vida adulta. Atualmente, nossa cultura entra em cena apenas para sequelar o que a família por si só ainda não aleijou. Por isso acredito que pela primeira vez na história nossa cultura não quer mais auxiliar na formação emocional e social do indivíduo, muito pelo contrário, ela anseia por destruir e paralisar o desenvolvimento emocional de seus membros para que se tornem mais maleáveis ao processo de exploração neoliberal. 

Toda literatura psicológica do século XX buscou mapear as etapas do desenvolvimento emocional do  ser humano tendo em vista determinar as condições que favoreciam seu amadurecimento. Acredito que isso foi feito de forma magistral por educadores e teóricos das áreas psi, salve todas as criticas à ideia de desenvolvimento e "cura" que permeiam a ideia de saúde e normalidade emocional. O que me espanta é a insistência de uma ingenuidade que estava presente, por exemplo, nos físicos do início do sec.20 quando permitiram que a urgência da guerra nublasse a percepção de que sua magnífica teoria se transformaria em uma bomba que matou 200 mil pessoas instantaneamente. Atualmente os departamentos de marketing, manipulação de dados, interesses políticos escusos de grandes conglomerados bilionários, instrumentalizam a psicologia para calibrar políticas públicas, mantendo a maioria das pessoas em um estado de privação permanente. 

Percebeu-se que a família tem um papel fundamental na formação emocional do bebê desde os primeiros momentos do nascimento. O que a cultura neoliberal faz? Lança as pessoas em um estado de precariedade material e insegurança permanente. Crianças nascem em periferias sem conhecer o pai, a mãe é muito jovem e ainda não tem como se sustentar, deixando a criação para terceiros, em geral os avós. Antes que você torça o nariz para meu texto, pensando que irei me encaminhar para um ponto de vista conservador e lutar pela família "como deus quis", eu adianto que esse não é meu propósito aqui. Alias é o que eu vejo se instalar de forma um pouco silenciosa em psicanalistas sem um pouco de conhecimento na área da cultura. Querer defender que as crianças precisam de um ambiente familiar estável não necessariamente indica que esse ambiente deva ser a família tradicional judaico cristã.

A percepção desse interesse sistêmico em manter todos em uma posição de imaturidade emocional me parece explicar essa tendência simplista do discurso conservador atual em defender os valores tradicionais da família brasileira da tal "ideologia de esquerda". Nobéis em economia comportamental, a ideia de que o indivíduo se afirma pelo consumo, o avanço da internet e do monitoramento individual potencializaram a infiltração dos interesses econômicos na mente das pessoas em níveis estratosféricos. O lobby político é a outra face desse poder concentrado nos 1% que dissolve todos os mecanismos "antiquados" de regulação do mercado, enquanto a globalização despedaçou toda estrutura do trabalho criada no século XX. Difícil acreditar que essas mudanças foram idealizadas por Marx.

"A verdade é que muitas pessoas em nossa cultura não sabe o que é amor. E esse desconhecimento parece um segredo horrível, uma ausência que precisamos esconder." 

bell hooks pg.53

Esse é o ponto cego mais estrondoso da história. Bell Hooks conseguiu tocar um mistério que ninguém consegue tematizar adequadamente. Um negócio escorregadio, fugidio. O amor? Não! Absolutamente não... o grande protagonista de nossa cultura da privação é o desamor!

O desamor é o grande protagonista de nossa história porque ele se tornou a moeda de troca universal. A moeda mais importante da atualidade não é o dólar, nem o bitcoin, mas o desamor. Com o desamor podemos extrair tudo das pessoas: podemos faze-las trabalhar 16 horas por dia de segunda a segunda, acreditando que terão uma vida legal depois de aposentar(mesmo que o prazo para se aposentar aumente a cada gestão); ou que vale a pena viver com um subemprego sem garantia social nenhuma. Acreditamos que relacionamentos devem ser pautados pelas regras do consumo e que nossos corpos são inadequados, logo, precisamos fazer inúmeras intervenções cirúrgicas e dietas malucas que movimentam milhões... nós nos sujeitamos a tudo porque queremos reencontrar o amor do qual fomos privados. O capitalismo apenas administra as promessas. 

O truque é simples como desmamar um bezerrinho para alimentar a indústria leiteira, mas aplicados em nós, veja que irônico. Bilhões de pessoas na miséria, 1% dos mais ricos com o capital equivalente a metade do planeta e ainda acreditamos que o crescimento econômico vai nos ajudar a superar a pobreza. Quando vamos perceber que a pobreza é intencional? A miséria extrema é projeto em larga escala extremamente bem sucedido.   

Estamos dispostos a sacrificar nosso futuro e nosso planeta, tudo isso porque não sabemos o que é o amor. Se soubéssemos o que é o amor, essa loucura teria acabado há muito tempo.  

O amor foi sequestrado pelo neoliberalismo e deve estar padecendo torturas em alguma base secreta americana. Não pode voltar a circulação de forma nenhuma! Tão logo retorne, vai ser difícil convencer alguém que essa merda que o capitalismo chama de vida vale a pena.  


*O livro citado é o Tudo sobre o amor, novas perspectivas - Bell Hooks

        

  

 

  

Comentários

  1. Penso que há uma cultura de massa, onde devemos isso, devemos aquilo, onde somente o lógico e exato fazem sentido. Acaba por faltar o sentir. As pessoas nunca foram incentivadas a sentir, se expressar, serem livres para formar uma família não "convencional" por exemplo.. amar? Sentimentos.. "Coisa" para os fracos..
    Por isso vejo pessoas entrando em surtos qdo se permitem olhar pra dentro e se permitem sentir..
    Afinal só se pode amar e ter bases sólidas, onde o terreno é propício, onde há liberdade para ser você mesmo(a), onde o auto-amor se faz morada. Só damos o que temos ou o que conhecemos..

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    1. Oi Dani! Você percebeu o que eu estou tentando dizer há muito tempo... o desamor como elemento cultural. O desamor é uma ferramenta te controle usada em larga escala.. enquanto não entendermos isso vamos sofrer essa "destruição em massa" como uma coisa ocasional, um efeito colateral, quando ela na verdade é a causa do nosso atual estado de coisas.

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  2. achei o último parágrafo especialmente genial, meu amigo. e que coisa boa você usar o termo "desamor" em vez da tão batida "falta de empatia". precisamos estudar, praticar e ensinar o amor se quisermos continuar existindo como seres humanos.

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    1. A empatia é um tema esvaziado porque se tornou um imperativo moral, um "você deve ser assim" que ninguém consegue explicar o "como ser assim". Todos dizem que devemos ser empáticos, mas ninguém fala como. Na verdade, construímos um mundo onde ser empático é inviável e queremos eliminar os dissabores da babaquice generalizada com doses cavalares de auto ajuda adocicada, sem tocar o que realmente importa.

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