O ressentimento e a política da impotência
Saul Newman
Em tempos de notas de repúdio e pessoas escrevendo "absurdo" em caixa alta, pensar o ressentimento se torna uma tarefa incontornável. Começando pelas ideias de Nietzsche, espero trazer algumas reflexões sobre o porquê é tão tentador reclamar sobre o mundo, os políticos, etc. Peste que avança sobre todas as orientações ideológicas, da esquerda à direita, e ameaça nos prender na rocha da eterna esterilidade.
Em seu livro Genealogia da Moral, Nietzsche pensa como a
moralidade se constrói historicamente. Isto era algo inovador porque a moral
sempre foi tratada como uma disciplina imutável, tendo em vista que o bem e os
valores sempre foram relacionados à Deus e aos mais sublimes motivos da
humanidade, logo, o bem seria algo estático e nossa tarefa seria simplesmente
lutar para alcança-lo.
Ao observar as mudanças de significado dos valores morais na
história humana, Nietzsche percebe uma mudança fundamental na compreensão do
que nós entendemos como “o bem” acontece quando os valores são transformados
pelo que ele chama de “moral de rebanho” ou “moral escrava” em contraste com a
moral dos senhores, mais antiga e aristocrática.
Nietzsche diz que na antiguidade os senhores estabeleciam o
que era o bem a partir de si mesmos. Os valores eram construídos com base nas
conquistas e no poder daqueles que estavam em uma posição de destaque na
estrutura social, sendo o mal uma atribuição feita àqueles que não
compartilhavam de suas qualidades.
“Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus
atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo,
de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.” Pg11 Gen
Quando aqueles que não estavam em uma boa posição social
desenvolvem uma moral própria, a “moral de rebanho”, eles constroem uma moral
que reflete sua impotência para mudar a realidade. O que eles podem fazer para
se vingar de seus senhores sem terem que se expor às represálias e a própria destruição?
A Resposta se constrói através de uma artimanha moral: dizer que os superiores são
maus, enquanto eles, por contraste, se tornam bons.
Para Nietzsche a construção da moral do rebanho não se dá
por uma mudança de vida, mas por uma inversão da moral dos senhores. Isso é
ilusório, mas consegue mudar uma situação completamente desvantajosa,
humilhante, com a qual as pessoas em camadas sociais mais baixas tinham que
conviver, para lhes permitir uma exaltação moral de sua própria miséria.
“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a
si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um
“não-eu” — e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece
valores — este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si — é
algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um
mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto — sua ação é no fundo
reação.” Pg17
Quando a moral de rebanho inverte o valor dos senhores, ela
se afirma de fora para dentro. Ela precisa de senhores para negar, porque
quando dizemos que os privilegiados são maus, conseguimos, por tabela, fazer
uso de sua imagem para nos tornar pessoas melhores. Esse exercício de vingança
que transforma os senhores privilegiados em seres maus é o que coloca o
ressentimento como base da moralidade do rebanho. Desta forma, o ressentimento é
orientado para um “exterior”, uma negação invejosa daqueles que possuem o que nós
adoraríamos possuir.
A elevação de nossa imagem moral via ressentimento é passiva porque não precisamos fazer nada para valorizar nossa imagem moral a não ser jogar sobre aqueles que estão acima de nós a culpa de todo o mal que sofremos.
A transformação dos valores é um ponto chave na interpretação de Nietzsche sobre a moral de rebanho, pois aqui ele nos revela o ponto em que o ressentimento começa a atuar, criando uma maneira de valorização do indivíduo mesmo em condições de profunda miséria e desvantagem social. Nietzsche percebe que o ressentimento permite à moralidade de rebanho extrair satisfação do sofrimento e da submissão às elites.
“Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos
outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa
que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a
ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a
vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige
pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” — isto não significa,
ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente
fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”;
mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos
possuem (os quais se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande
perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da
impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como
se a fraqueza mesma dos fracos — isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua
inevitável, irremovível realidade — fosse um empreendimento voluntário, algo
desejado, escolhido, um feito, um mérito.”pg 23
O ressentido diz: eu gosto de ficar sozinho, não gosto de política, não quero amar, não acredito em deus, não quero ter família, não gosto de ler - sem perceber que essas coisas nunca estiveram ao seu alcance.
Ressentimento e a esquerda
O ressentimento é a maneira privilegiada de ofertar valorização pessoal às massas esvaziadas de meios e investimentos afetivos. Eu acredito que sem o ressentimento a cultura das massas contemporânea não seria possível, já que a tensão e privação sem limites que submetemos os milhões não teria nenhuma contrapartida e provavelmente seria implodida por tensões sociais.Quando transformamos as pessoas que nos opõem ou que pensam
diferente de nós em pessoas más, estamos organizando o mundo de uma forma
simplista e polarizada apenas para conseguir extrair disso uma bondade
apassivada. A maldade do outro se torna um obstáculo intransponível para a
comunicação e trocas significativas, afinal, quando chamo de maus pessoas que
pensam diferente, estamos simplificando e apagando toda a complexidade que as
pessoas possuem.
A operação de tornar aqueles que são diferentes de nós em
pessoas más é uma coisa muito comum no universo cinematográfico, onde é fácil
perceber que os mocinhos possuem uma história muito mais rica em detalhes do
que o vilão, geralmente pintado com cores pesadas e atitudes caricatas –
exalando maldade pelos poros.
A construção de uma realidade polarizada é reflexo de
individualidades que não conseguem se desenvolver e que precisam simplificar um
mundo que se torna complexo numa velocidade assustadora.
Reclamar da maldade do mundo e eleger bodes expiatórios é
uma prática muito comum nos noticiários sangrentos onde os apresentadores se deleitam
em despejar notícias ruins e recriminar os “bandidos” que foram pegos. Podemos eleger os bandidos que mais nos aprazem: os esquerdistas, os direitos humanos, os gayzistas, feministas, politicamente corretos mimizentos, os pobres, intelectuais, satanistas, macumbeiros, imigrantes, muçulmanos, judeus...
Esse linchamento moral serve ao ideal conservador quando entrega diariamente um espetáculo que permite aos telespectadores uma sensação
de contraste, uma situação que nos permite enxergar claramente que aquele
criminoso é “o mau”. Assim, podemos também nos sentir bons, junto com o
apresentador que se destaca da escória que noticia com um semblante de
reprovação.
“Eu sofro: disso
alguém deve ser culpado” — assim pensa toda ovelha doente. Pg.73
A situação da pessoa que está presa no ressentimento é bem
complicada, já que todos ao seu redor acabam sendo culpadas por seu sofrimento,
o que continua o ciclo infinito de vitimização e reclamação. Tal situação nos
torna dependentes da oposição e nos faz privilegiar encontros que ao fim
despertarão rivalidades e brigas.
Todos nós sofremos a explosão das famílias, das estruturas tradicionais de trabalho e das tradições grupais e regionais. O capitalismo se esforça para universalizar a pobreza e a precariedade, enquanto alimenta os indivíduos com rações de cristianismo e boa vontade. A revolta que permeia os corações ressentidos pode explodir à vontade sobre os alvos eleitos pelos influenciadores de plantão, tudo de maneira virtual, é claro.
Como escapar do ressentimento?
“O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante...” pg30
Uma chave para conseguirmos nos libertar da posição do
ressentimento é a responsabilização.
Culpar os outros ou a si mesmo gera mais peso e tira de nossas mãos a capacidade de encaminhar a situação para uma solução possível. Perceber que nosso sofrimento é um problema nosso em primeiro lugar e que mudar essa situação está sempre em nosso alcance é um passo fundamental para que possamos assumir a responsabilidade pelo nosso sofrimento.
A responsabilização nos permite encarar o medo diante da tarefa de descobrir nosso lugar no mundo. Esse medo é comum a todos nós, porém somos normalmente pressionados para nos mostrar felizes e realizados. Diante da fragilidade de nossa inexperiência e da falta de apoio daqueles que nos cercam, acabamos evitando assumir responsabilidade. Dessa forma, nos fechamos em uma postura de reclamação e ressentimento.
Isso não é um mero "chamado à ação" que ignora nossa realidade social, antes, é uma maneira de oferecer uma outra fruição existencial que escape ao prazer compulsivo da reclamação.
O niilismo ofertado pelo neoliberalismo em sua vertente aquecimento global é o exemplo mais cristalino do desespero que a impotência ressentida pode nos proporcionar. Sabemos que criticar, fazer congressos, campanhas, documentários impactantes não está mudando em nada o modo de produção capitalista. Mesmo assim , continuamos fazemos congressos e campanhas aos montes, pois adoramos denunciar o capitalismo selvagem e predatório.
A culpa não é a saída
Junto com o CO2, aumenta também os níveis de culpa individual à níveis estratosféricos. Tudo isso harmoniza perfeitamente com nossa fixação à cola do ressentimento. Enquanto as igrejas, os documentários, os noticiários nos enchem de culpa e nos aprisionam em uma posição de corrupção e maldade, entendo que furar esse esquema passa pela aceitação de nossa capacidade criativa para o bem.
Para Nietzsche, a bondade consiste em uma positividade, em um transbordamento da ação que se afirma como boa.
“Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”;
eles não tinham de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se
dela, menti-la para si, por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam
fazer os homens do ressentimento); e do mesmo modo, sendo homens plenos,
repletos de força e portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a
felicidade da ação — para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade.” Pg18
A maior recompensa de uma moralidade auto afirmativa é a
possibilidade de conviver com o diferente sem que precisemos nos opor,
conseguir debater e agregar o diferente é uma característica fundamental para
que uma relação verdadeira possa surgir. Seja com o mundo e a natureza, ou com nossos semelhantes.
“Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! —
e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo
como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe
a desprezar, e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal
como o concebe o homem do ressentimento — e precisamente nisso está seu feito,
sua criação: ele concebeu “o inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito
básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom” —
ele mesmo!”
Citações da Genealogia da moral de Nietzsche e de Saul Newman em seu artigo Anarquismo e as politicas do ressentimento.
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