Só me ligam quando morre alguém

Cena de Loucos por Justiça

 "Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação."

Filhos brigam com seus pais para serem reconhecidos, aceitos, amados. Porém, nunca são reconhecidos, aceitos e amados. Da mesma forma, amamos pessoas que perpetuam esse desencontro, pessoas que estarão ao nosso lado pela eternidade recusando nosso protesto por reconhecimento. Sempre amamos pessoas que não tem razão, não falam, não transam, não nos ouvem... 

Se nossa questão está no reconhecimento, no amor, etc. Por que não buscamos pessoas que nos amem e reconheçam? Alias, normalmente recusamos pessoas que nos tratam com amor, carinho e reconhecimento. Fulano é legal demais, mas falta alguma coisa... Não sinto a mesma coisa que sentia pelo ciclano, aquele que não me retornava mensagens e ficavam com um monte de gente na minha frente.

Existe um mistério nas famílias que eu conheci durante minha vida: a relação pela desgraça e pelo negativo. Como disse uma paciente, "minha família nunca me trouxe coisas boas, apenas tragédias... só me ligam quando morre alguém."

As coisas nunca foram boas nessas terras, neste texto vou tentar desvendar um pouco essa tragédia.

Podem me questionar, dizer que existem famílias legais que se reúnem no natal e realmente se divertem. No início dos anos 2000 eu encontrei um amigo do interior cujo natal me fez renovar a fé na família, tanto que faço questão de celebrar o natal em Cruzeiro sempre que posso. Mas eu sei que isso não é uma regra, infelizmente.

A tese que eu estou desenvolvendo é que nós temos um carma vinculado a nossa história que nos impede de trocar amor de forma franca e positiva. Toda troca amorosa é fraturada já nos primeiros momentos de vida e o bebê é privado de uma realização amorosa, de uma experiência positiva de afetividade. Isso porque nossos pais nunca se amam de forma franca, lançando sobre o bebê uma espécie de estigma da ausência. Nesse mundo, nenhum amor pode ser correspondido.

O olhar da mãe nunca se cruza com o filho, logo este também se perde, errando para sempre.. para onde mamãe estava olhando?

"A busca do objeto transformacional é uma busca de memória infinita, por algo no futuro que reside no passado. Acredito que se investigarmos muitos tipos de objeto relacionados, descobriremos que o sujeito está buscando o objeto transformacional e desejando se combinar, em uma harmonia simbiótica, a uma estrutura estética que promete metamorfosear o self." Bollas

Com Freud aprendemos que a perda nos transforma de forma existencial, nós assimilamos aqueles que perdemos para conservar em nós o objeto perdido. O insight de Bollas reflete as ideias de Winnicott segundo o qual a mãe é um objeto que transforma o bebê em um adulto através de seus cuidados. Ao amamentar e cuidar, a mãe fornece um encontro que amadurece e faz o bebê crescer e evoluir não apenas fisicamente, mas emocionalmente. 

O desencontro amoroso entre mãe e filho interrompe essa evolução afetiva, nos tornando mancos amorosamente. Dessa forma, quando nos tornamos adultos, a única maneira de expressarmos amor é retornando a essa cena fraturada. Em outras palavras, a tradição chinesa de esmagar pés femininos para lhes conferir um "balanço atraente" no andar, tem sua versão brasileira na sistemática fratura afetiva impressa em nossas vidas desde a mais tenra idade. 

Nossa herança colonial nos fez em escala histórica o que vivemos individualmente em nossos lares. Nunca olhamos para nosso país como algo com o qual poderíamos nos identificar. Nós matamos nossos índios, poluímos e destruímos toda beleza natural e sequestramos milhões de africanos para lhes imprimir a mesma característica de nossos ilustres escravocratas: serem desindentificados, desfigurados historicamente e alienados de sua ancestralidade.

O que se perpetua em nosso território é uma fratura ancestral de nossa capacidade de amar, legado de nossa incapacidade de nos constituir nos termos europeus. Enquanto coletividade manca e miserável afetivamente, nunca conseguiremos nos restabelecer enquanto operarmos a construção de identidade nos moldes da modernidade europeia. (existiria a possibilidade de uma história dos afetos? Ou melhor, existiria uma história que não fosse afetiva? Não seria a dinâmica dos afetivos uma usina de repetições operando no horizonte não pensado de nossas vidas?) 

Destruímos terreiros de candomblé, jogamos milhões de famílias na miséria, matamos seus jovens pelo tráfico e pela polícia. Aqui, o trabalho civilizacional alcança o ápice da destruição das possibilidades de diferenças e pluralidades em prol de uma identidade que nunca se constituiu. De forma parecida os cuidadores educam seus filhos com uma moralidade baseada em obrigações unilaterais, impostos violentamente pelo adulto contra a fragilidade infantil. Isso patrocina uma educação estereotipada, incapaz de lidar com uma realidade minimamente plural e complexa.   

"Ser difícil, dentro do contexto de sua família, era um grande alívio. Era reconfortante descobrir que podia ser detestável e assegurava-se cuidadosamente de que se transformaria em alguma coisa excêntrica, baseada na recomendação que a mãe fazia a seus amigos: 'Ah, não espere de Paula seja calorosa com você, ela é um tipo bem desagradável de menina, não é Paula?... Ser detestável permitia a Paula conservar um senso de self, enquanto ser adorável teria comprometido a integridade de sua própria identidade." Bollas

A destruição e a assimilação é a marca de uma identidade paralisada no infantil oral, carente de uma relação interpessoal mais consistente. A criança disponível para amar encontra um adulto aleijado amorosamente, assim como essas terras encontraram os antigos portugueses. Somos um território pleno de potências existenciais que não podem ser fruídas pelo que são, a não ser que sejam devidamente sugadas por uma draga e transformadas em commodities. 

Para ser verdadeiro, precisamos ser odiosos, pois todo amor soa como falsidade. 

Essa fixação em um ser primitivo do ponto de vista afetivo transforma toda tentativa de amar em um andar no escuro vertiginoso que normalmente se encaminha para a sofrência anônima ou para relações turbulentas. O mesmo problema se manifesta quanto apelamos para uma identidade moderna para novamente nos sentir imunes a barbárie(miopia que confunde o natural e primitivo), essa eterna perseguição do passado no futuro. Para nós, a identidade moderna sempre se efetiva como o pior de dois mundos: uma família que assiste o natal pela televisão. 

"Será que é este o objetivo do ódio amoroso: ferir o outro? Certamente parece que sim. Podemos acrescentar que, como o ódio amoroso parece ser um modo singular de investimento do objeto, a gama de afetos é pobre e sendo assim, alerta-nos para outra característica típica das perversões. Finalmente, podemos apontar a natureza estereotipada e repetitiva do ódio amoroso; parece que a pessoa pretende criar uma relação objetal por meio de um afeto, em vez de procurar um outro e desenvolver a vida afetiva em harmonia, com uma crescente intimidade. Será que isso não sugere uma desumanização do outro, um aspecto que Khan salienta em sua definição de perversão, como uma pulsão para alienar o objeto do contato verdadeiro com a vida interior?" Bollas

Me parece que a perversão é o caminho natural das pessoas que querem ser modernas aqui no Brasil. É uma tentativa de negar o inegável e nos esviscerar da terra e do sangue de nossos mortos. 

Um ódio amoroso que pudesse ter um encaminhamento positivo me parece ser justamente a destruição de nossas aspirações modernas, o caminho da desconstrução de nossa herança colonial. Recusar um falocentrismo patriarcal racionalista nos pouparia de empreender esse épico violento destrutivo de negação de nossa eterna posição de párias do terceiro mundo (+ filhos mal amados criados por estranhos + nazista tupiniquim + cristãos macumbeiros + brotheragem + militares ociosos conspiradores+ crente que dá o ... pra não perder a virgindade). Nossa, não temos nenhum Nobel!? Ai está uma coisinha tipicamente moderna, pagar pau para branco europeu fdp que inventou nitroglicerina... (mais isso pode ser usado para fins pacíficos + tecnologia é uma ferramenta + bla bla bla). O infeliz inventou esse prêmio para aliviar seu carma... e aqui estamos nós tocando pandeiro novamente. Morra branco europeu com toda a culpa do mundo!*

"e minha opinião é a de que o objetivo principal do ódio amoroso é se aproximar do objeto" Bollas

Tendo em vista que nossa origem é contaminada, não devemos buscar a pureza em hipótese nenhuma, sob a pena de nos tornarmos perversos.

Não devemos consertar nosso passado, isso também nos encaminha para a eterna repetição. Aceitar a dor e a vergonha é sentir, e isso é o mais importante em nosso momento histórico. É necessário que possamos ampliar nossa paleta afetiva, descentralizar o ódio e a identidade, afinal, quando nos permitimos sentir, nos conectamos com as multidões de marginalizados - mortos e silenciados. 

Essa é a minha via crucis para exorcizar o ódio amoroso. Para vivenciar um encontro genuíno que me restitua o presente, ouço e clamo junto com as pedras.

Cena de O som ao redor



*Aqui me permiti expressar uma pequena parcela de meu ódio amoroso

Obra utilizada como referência - A sombra do objeto, Christopher Bolllas


  



  

 

 

   


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