Abraçando ilusões

A Sacerdotisa - tarô de Crowley
A Sacerdotisa no tarô de Crowley

"são ilusões, realizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais prementes da humanidade, e o segredo de sua força está na força desses desejos. Já sabemos que a apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor –, que é satisfeita pelo pai; a percepção da continuidade desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar à existência de um outro pai – só que agora mais poderoso." O futuro de uma ilusão

Quem me acompanha nessa vida sabe que eu trabalho pela construção de uma nova espiritualidade e que não me canso de criticar a depressão espiritual que chamamos ceticismo. Também é um divertimento pegar a racionalidade moderna pelo pé antes que ela saia triunfante da sala. 

Neste post, gostaria de compartilhar minhas primeiras ideias sobre o papel da ilusão em nosso desenvolvimento emocional e seu papel no estabelecimento das relações, tanto entre pessoas quanto entre nosso mundo interno-subjetivo e o mundo que nos rodeia. Começo com Freud porque ele me parece um modelo de pensador moderno, claramente crítico à religião e à ilusão. 

A ilusão é vista por esses pensadores como uma forma de preservar o psiquismo de frustrações que a realidade pode impor ao ser ainda imaturo, sem recursos para encarar os dramas e a brutalidade que estão ao nosso redor. Esse não é um ponto de vista compartilhado apenas por pensadores, mas pela maioria da população. Quando o tema é ilusão, logo pensamos em pessoas ingênuas, infantilizadas e manipuláveis que caem em qualquer golpe, a ilusão precisa ser eliminada o quanto antes... cresça! Lide com a realidade! Tão logo nos tornamos adultos, se faz necessário eliminar e purificar todos os traços da ilusão.

No caminho da purificação e do amadurecimento, precisamos eliminar todas as instituições e relações que se vinculam à ilusão. Para Freud, os alvos são a religião e a relação amorosa primária vinculada ao amor entre pais e filhos.

"A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade e, tal como a da criança, teria sua origem no complexo de Édipo, na relação com o pai. De acordo com essa concepção, seria possível prever que o abandono da religião terá de se consumar com a mesma inexorabilidade fatal de um processo de crescimento, e que nos encontramos nessa fase de desenvolvimento precisamente agora." O futuro de uma ilusão

A ilusão seria um recurso que amortece o impacto da realidade em nosso psiquismo, uma forma sofisticada de sobrepor os elementos perturbadores do mundo por uma versão mais amena, calmante, reduzindo nosso sofrimento e ansiedade. Esse recurso infantil deve ser abandonado na medida que crescemos e nos tornamos mais capazes de lidar com os desafios colocados pela vida adulta. O famoso "lide com isso" que  nos estapeia e nos faz acordar para o fato de não sermos amados, não sermos o centro do universo, imortais, filhos de Deus, etc. 

A religião em suas manifestações mais tradicionais geralmente infantiliza as pessoas e cria versões agradáveis de um pós vida que nos permita aguentar o baque de viver a realidade. Todos nós temos traumas, lembranças tenebrosas que preferimos esquecer e precisamos de pontos de apoio para poder lidar com esse sofrimento. Não seria ruim fantasiar para sobreviver, porém não é esse meu ponto de vista a respeito da ilusão. 

Pensar que a religião é um recurso defensivo seria reduzir toda uma tradição e histórias mitológicas ao status de mera ferramenta ortopédica infantil. Tal redução é injusta na medida em que esquecemos que a mitologia é um manancial de imagens e ferramentas que nos auxiliam a entender o humano, utilizado em larga escala pela psicanalise para construir seu arcabouço teórico. O mundo moderno tentou erradicar a ilusão, pensando que ela seria o que Freud descreveu em seu texto, apenas como um recurso defensivo infantil inadequado para seres intrépidos e guiados pela razão. Ironicamente, a cultura neoliberal contemporânea emprega a ilusão em larga escala, dos filtros do insta à campanhas de marketing, ela se tornou uma ferramenta central para acreditarmos que somos belos, amados e relevantes.

Nossa pobreza mitológica espiritual tem sido compensada pela ilusão ruim, hidrogenada, das redes sociais.   

"Os que baniram os contos de fadas tradicionais e folclóricos decidiram que, havendo monstros numa estória narrada à criança, deveriam ser todos amigáveis - mas se esqueceram do monstro que a criança conhece melhor e com o qual se preocupa mais: o monstro que ela sente ou teme ser, e que algumas vezes a persegue. Mantendo este monstro dentro da criança, sem falar dele, ou escondido no inconsciente dela, os adultos impedem-na de elaborar fantasias em torno da imagem que conhecem dos contos de fadas. Sem estas fantasias, a criança não consegue conhecer seu monstro melhor, nem recebe sugestões sobre a forma de conseguir controlá-lo. Em consequência, fica impotente face às suas piores ansiedades - muito mais do que se tivesse ouvido contos de fadas que dão forma e corpo a estas ansiedades e mostram também os meios de vencer estes monstros. Se nosso medo de ser devorado toma a forma tangível de uma bruxa, podemos nos livrar dele queimando a bruxa no fogão. Mas estas considerações não ocorrem aos que baniram os contos de fadas. Espera-se que a criança aceite como correta apenas uma visão unilateral e limitada dos adultos e da vida".   Psicanalise dos contos de fada

A ilusão contida nas fantasias e histórias das mitologias e do folclore popular enriquecem a experiência afetiva das crianças, permitindo uma ampliação de sua capacidade de se relacionar e lidar com seus conflitos existenciais. Esse é o erro fatal do racionalismo moderno, acreditar que a ilusão é um mero "andador" que auxilia a criança a se tornar adulta, como algo que deve ser abandonado tão logo consigamos andar com as próprias pernas.   

"Tal manifestação de um amigo que reverencio, e que já apreciou ele mesmo poeticamente a magia da ilusão, trouxe-me dificuldades de alguma monta. Eu próprio não consigo divisar em mim esse "sentimento oceânico". Não é fácil trabalhar cientificamente os sentimentos." O mal estar na civilização

Descartar o que não faz sentido racionalmente é a prática mais perniciosa que o método científico incutiu na mente popular. Essa amputação de nossa capacidade de imaginar torna o ambiente existencial avesso aos experimentos e fantasias necessários para construirmos pontes entre nossa experiência subjetiva e a realidade "externa". A ilusão conecta mundos infinitamente separados, abismos intransponíveis do ponto vista racional... a distancia entre o que eu sinto e o que você sente. 

Começa a ficar claro porque um dos maiores problemas da atualidade é nossa incapacidade de se relacionar, principalmente quando somos educados à racionalizar e controlar todos os aspectos de nossas vidas. O que não é tão claro é a relação entre o uso irrestrito da racionalidade e nossa incapacidade de nos relacionar. 

"Imaginemos um bebê que nunca tivesse sido amamentado. A fome surge, e o bebê está pronto para imaginar algo; a partir da necessidade, o bebe está pronto para criar uma fonte de satisfação, mas não existe uma experiência prévia para mostrar ao bebe o que ele tem que esperar. Se, nesse momento, a mãe coloca o seio onde o bebe está pronto para esperar algo e se for concedido tempo bastante para que o bebe sacie se sacie à vontade, com a boca e as mãos, e, talvez, com um sentido de olfato, o bebe "cria" justamente o que existe para encontrar. O bebe, finalmente, forma a ilusão de que esse seio real é exatamente a coisa que foi criada pela necessidade, pela voracidade e pelos primeiro s impulsos de amor primitivo. A visão, o olfato e o paladar registram-se algures e, passado algum tempo, o bebe poderá estar criando semelhante ao próprio seio que a mãe tem a oferecer. Um milhar de vezes, antes de desmamar, pode ser justamente propiciada ao bebe essa apresentação peculiar da realidade externa por uma única mulher, a mãe. Um milhar de vezes houve a sensação de que o que era querido era criado e constatado que existia. Daí se desenvolve uma convicção de que o mundo pode conter o que é querido e preciso, resultando na esperança do bebe em que existe uma relação viva entre a realidade interior e a realidade exterior, entre a capacidade criadora, inata e primária, e o mundo em geral, que é compartilhado por todos."  Brincar e a realidade 

Nesta passagem, Winnicott imagina o que aconteceria na primeira amamentação. Esse recurso é impressionante por nos permitir entender a ilusão como um recurso fundamental para conectar a percepção do bebê com sua própria subjetividade. A ilusão é como uma linha que atravessa abismos, uma tapeçaria demiurgica que auxilia toda criança a criar seu mundo do zero. Essa ilusão criadora só pode existir em relação com a figura materna, uma ilusão à dois. A assistência materna permite que a criança se sinta onipotente, criadora dos objetos que poderão saciar suas carências, objetos que posteriormente serão reconhecidos como o mundo externo. 

Todo nascimento é um novo gênesis, patrocinado pela presença de uma mãe que cuida para que a luz apareça quando o bebê diga: haja luz! 

Todas as coisas que reconhecemos como realidade, ou outras pessoas, só são possíveis pelo trabalho ilusório de uma mãe invisível, trabalhadora anônima(pois está simbioticamente conectada ao bebê) da tapeçaria existencial... uma Isis estendendo o véu da ilusão como a pele sensível que vitaliza os objetos percebidos pelo bebê.

"Referindo-se a uma carta de Romain Rolland, que escreveu que aquilo que foi o conforto último para um homem é uma "sensação de eternidade", um sentimento "oceânico", Freud, enquanto honrava seu amigo, rejeita esse sentimento como uma ilusão, uma vez que ele não pode "descobrir esse sentimento oceânico em mim mesmo". Descrevendo esse sentimento de "um laço indissolúvel de ser um com o mundo e com um todo", explica que "a partir de minha própria experiência, não posso convencer a mim mesma da natureza primária de tal sentimento. Mas isso não me dá o direito de negar que ele de fato não ocorra em outras pessoas. A única questão é se ele está sendo corretamente interpretado". Ainda levantando a questão da interpretação, Freud imediatamente dissipa o problema que ele colocou, rejeitando a primazia de um sentimento de conexão com base que "ele se encaixa muito mal na fábrica de nossa psicologia". Com esta base, ele sujeita o sentimento a uma "psicanalise - isto é, a uma explicação genética", derivando o sentimento de conexão de um sentimento mais primário de separação. Uma voz diferente

Carol Gilligan percebe a recusa do sentimento oceânico como uma escolha de Freud em fundar a inauguração da existência do bebê em um ato de separação da mãe. Essa escolha se revela como uma construção tipicamente masculina da ordem(ou do eu) como um ato de separação, organização, de um caos primordial representado pela conexão simbiótica com a mãe. 

"há uma intimação na parte de Freud da sensibilidade diferente da sua própria, de um estado mental diferente da sua própria, de um estado mental diferente sobre o qual ele estabelece a premissa de sua psicologia, a "exceção única" para a "hostilidade mútua primária dos seres humanos", para a "agressividade" que "forma a base de cada relação de afeto e amor entre pessoas"; e esta exceção está localizada na experiência feminina, na "relação da mãe com seu filho homem". Novamente, a mulher aparece como a exceção para a regra dos relacionamentos, ao demonstrar um amor não imiscuído com a raiva, um amor que não se ergue da separação ou de um sentimento de ser um com o mundo externo como um todo; mas, invés disso, de um sentimento de conexão, um laço primário entre o outro e o eu. Mas este amor de mãe não pode ser compartilhado, diz Freud, pelo filho, que assim "faria a si mesmo dependente de uma forma mais perigosa em uma porção do mundo externo, nomeadamente seu amor-objeto escolhido, e expõe a si mesmo ao sofrimento extremo se ele for rejeitado por aquele objeto ou perdê-lo através da infidelidade ou morte." Uma voz diferente

Decorre dessa escolha o fato da psicanalise entender a frustração(castração) como um ato organizador do psiquismo e a raiva como primeiro afeto percebido pelo bebê, pois só é possível de ser sentida quando a mãe se afasta, deixando o bebê exposto à fome e estimulando uma reação que parte de uma sensação não mais intermediada pela mãe.

Freud traduz o medo masculino primordial de que as relações afetivas possam engolir e destruir sua individualidade, por isso a recusa do sentimento oceânico como uma espécie de órgão vestigial infantil, ou mais grave, como algo que ele nunca tenha sentido. Porém, essa negação fundamental apenas perpetua esse trabalho invisível do feminino em sustentar a insegurança de um masculino que precisa negá-la para continuar a sonhar com uma racionalidade pura.  

"Conquanto Freud alegue que "nós nunca somos tão indefesos diante dos sofrimentos como quando nós amamos"". Uma voz diferente

Todo encontro humano é intermediado pela ilusão e não existe relação possível sem o véu de Maya/Isis. Negar esse fato é perpetuar a exploração da natureza/feminino como condição para sustentar uma racionalidade infantilizada, desertificada e apartada de sua relação com os outros, com o mundo e seu plano espiritual. O amadurecimento, quem diria, também precisa ser uma tarefa da razão moderna e parte dessa tarefa passa por reconhecer o valor da ilusão em nosso processo criativo de relação com o mundo. 

Termino com mais uma citação de Carol Gilligan:

"através do trabalho de Freud, as mulheres permanecem como uma exceção em sua descrição dos relacionamentos, e elas soam como um tema contínuo de uma experiência de amor que, apesar de descrita-como narcisista e hostil à civilização - não parece ter a separação e a agressão como suas bases."pg107

A solidão moderna nunca existiu. Ela, a ilusão, sempre esteve lá.

Comentários

  1. A ilusão é o que imaginamos que acontece no interior da semente enquanto ela dorme na terra, esperando seu momento de germinar.
    É nossa companhia expectante que pacientemente observa o broto romper a casca e alcançar a primeira luz, logo acima da linha do solo. Fio verde clarinho, folha mindinha. Está lá enquanto o broto toma força e imaginamos o porte, se poderá alcançar o céu ou apenas forrará nossos passos. Se vier de flor, nos ajuda a pintar cores diversas, e cheiros. Imaginamos se terá espinhos, venenos.

    Quando a planta finalmente se concretiza, a seu tempo, avaliamos as rupturas entre o real e o imaginado (conhecemos as desilusões) e ponderamos o sem fim das coisas que podem ou não nos manter ali, conectados. Mas o relacionamento franqueado pela ilusão, que foi criado desde a semente, permanece em nós e emoldura a nossa história. Sentimos. Concordo, a solidão moderna nunca existiu. Bj.

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