Vamos de novo!

"Bem aventurados os esquecidos, pois tiram maior proveito de seus equívocos"


"Takver acordou ao amanhecer. Apoiou-se no cotovelo e olhou para o quadrado cinza da janela, depois olhou para Shevek. Ele estava deitado de costas, respirando tão calmo que seu peito mal se movia, o rosto um pouco jogado para trás, distante e circunspecto, na luz fraca. Nós viemos, pensou Takver, de uma longa distância um para o outro. Sempre foi assim. Atravessamos grandes distancias, longos anos, abismos de probabilidade. É porque ele vem de tão longe que nada pode nos separar. Nada, nem as distâncias, nem os anos podem ser maiores do que a distância que já existe entre nós, a distância de nosso sexo, a diferença de nosso ser, nossas mentes; essa lacuna, esse abismo que transpomos com um olhar, com um toque, com uma palavra, a coisa mais fácil do mundo. Veja como ele está longe, adormecido. Veja como ele está longe, ele sempre está longe. Mas ele volta, ele volta, ele volta..." Ursula K Le Guin


A repetição traumática como revelação do coração da vida

Hoje sonhei com uma corrida na qual eu chegava em 13º lugar. Eu corria na escola de especialistas em Guaratinguetá, e pensava: será que alguém saberá que eu corri bem chegando nessa posição? Depois da prova, caminhava pelas instalações e via um ônibus chegando, eu começava a chorar... finalmente acabou. De alguma forma me encontro aprisionado no dia da formatura de meu curso de sargento, tive vários sonhos com a mesma temática: caminhando pela aeronáutica e percebendo que a formatura estava para acontecer. Meu Deus, a farda!? Estou atrasado para a formatura! O que será que esse sonho repetido quer dizer?

Havia um "relógio" pendurado na fachada do esquadrão ostentando a contagem regressiva dos dias que faltavam para a formatura. Isso para vocês terem uma ideia do quanto era importante saber que aquilo iria acabar. Muitas vezes eu tinha contado os dias para ir embora, desistir; depois de um tempo, desisti de desistir. A medida que o relógio caminhava para o fim, o clima foi ficando mais suave, anunciando que aquele período prisional estava acabando. Talvez o sonho recorrente com a formatura se harmonize com a tese de Freud que dizia que os sonhos expressam a realização de nossos desejos inconscientes. Porém, o desejo de me formar nunca foi algo inconsciente. Hoje, poderia dizer que isso expressa um desejo de voltar a ser militar, viver uma vida regrada e tranquila... Porém, a formatura era algo específico daquele período de escola militar e, por isso, penso que algo em meu inconsciente está em provação, aprisionado, querendo se libertar. Ou seria uma busca por validação? A partir de agora você é isso! Conseguiu Paulo, parabéns!

Para Bessel van der Kolk, os sonhos traumáticos de guerra se repetem pois seriam uma forma das vítimas "acompanharem" seus colegas mortos em combates, honrarem aqueles que se foram e estar com eles nesse momento derradeiro. Freud se incomodava com os sonhos traumáticos por desmentirem sua tese da realização onírica do desejo, dai se encaminhando para o postulado de uma "pulsão de morte", de uma energia que possui um empuxo para a destruição. Creio que os sonhos traumáticos, assim como performances teatrais que repetem ad nauseam ações estereotipadas, estão nos mostrando que a vida não se submete à razão platônica/cristã; este velhaco que enxerta nas coisas uma tal finalidade. 

Não seria nossa identidade uma repetição? O que chamamos igual, idêntico, não seria uma miríade de repetições? Quando as pessoas repetem situações traumáticas, seja em sonhos ou em relacionamentos, não seria um padrão que teria se infiltrado no núcleo do eu como um vírus? Não seria a máquina do ser um grande motor de repetição que pode ser adulterado e invadido? Repetindo coisas que são estranhas ao ser de seu hospedeiro, os traumas seriam marcas exteriores que romperam a fina camada epidérmica de nossa identidade. Dessa maneira, percebemos que o igual é na verdade uma sequência que cria em nós uma impressão de igualdade. Como um rolo de filme projetado nas salas de nossas experiências, o eu é uma infinidade de imagens sobrepostas. 

Quando Freud se pergunta pela repetição do traumático, até parece que apenas o traumático não deveria se repetir e que apenas as realizações de desejo deveriam ter lugar no palco da vida. Repetimos o que nos dá prazer e excluímos o desprazer... faz sentido não? E o que a vida nos diz? Repetiremos tudo... que tal? 

A repetição do trauma é uma fratura pela qual descobrimos a repetição vital em estado bruto, e sua instalação se deve à própria natureza rígida de nossa concepção do eu e de nossa tentativa de purificar da vida seus conteúdos dolorosos. Quando o indivíduo é exposto a situações brutais, os esquemas que mantem nossa impressão de controle são desmantelados, restando a carne viva pulsante como último elemento estruturante.  

O idêntico como instituição penal 

A repetição é sempre vista como uma coisa monótona, cansativa. Parte desse ponto de vista se constrói sobre a crença de que nós precisamos ter experiências diferentes, inovadoras, surpreendentes para sermos felizes. Para os gregos, a repetição era o inferno. Basta lembrar dos mitos que representam as piores condenações, Sísifo, Íxion e Tântalo são ícones da repetição traumática, prisional. 

E se nosso eu, como as religiões, psicologias e filosofias gostam de postular, for na verdade um presídio conceitual? Todo idêntico soa cansativo, por que, então acreditamos que nosso ser segue um padrão de identidade? Dentro desse registro conceitual, o igual soa como algo congelado e estruturado no além do tempo. Mas basta você pensar em repetir algo por dois anos, como foi o caso de minha escola militar, que isso já desperta calafrios.   

Os gregos transformaram a ideia de repetição em uma punição à semelhança dos cristãos que transformaram os desejos da carne em pecado e o sofrimento em uma punição. As histórias de inferno, prisões e exílios tentam organizar o bruto da vida em gavetas que reduzem a vida para torná-la mais palatável. A vida continua se infiltrando como um traumático em nossa sociedade, nos dizendo que nossas ideias não importam, o inferno não importa, a punição não existe... tudo se repete.

"Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz." Camus

Durante meus dois anos de escola militar, a vida era um inferno grego no melhor estilo. Corria para todo canto, limpava alojamentos, marchava várias vezes o mesmo percurso debaixo do sol escaldante, usando um capacete que acumulava o suor de milhares de usuários. Tudo isso girava no vazio, na realização da pura exaustão. Mas existiam dias em que eu acordava e via o sol nascer no pátio dos esquadrões, a lua cheia nos domingos de retorno do final de semana, esses momentos eram intensos de uma maneira que não consigo pôr em palavras. Toda essa repetição foi me ensinando que eu não poderia adiar o que eu queria, não teria uma pausa, eu deveria me impor... nem que fosse um espasmo.

"As vezes os chefes do presídio se surpreendem quando algum detento, depois de vários anos de vida tão quieta, exemplar, depois até de ter sido nomeado inspetor dos carcereiros por seu comportamento elogioso, de repente, sem quê nem para quê - como se estivesse com o diabo no couro -, mete-se a tumultuar, a pandegar, a praticar desatinos, e vez por outra simplesmente se arrisca a cometer crimes: ou desacata declaradamente os superiores, ou assassina alguém, ou estupra, etc. Olham para ele e pasmam. Pensando bem, é possível que todo o motivo dessa súbita explosão num homem de quem menos se poderia esperá-la provenha de uma manifestação melancólica e espasmódica de sua personalidade, de uma instintiva saudade do que ele já foi, do desejo de dar-se a conhecer-se, de mostrar sua individualidade humilhada, que de repente extravasa e transborda ódio, na fúria, na perturbação da razão, num ataque súbito, espasmódico. Assim como, talvez, alguém que seja enterrado vivo num caixão e ali desperte, passe a esmurrar sua tampa tentando levantá-la, embora, é claro, a razão possa persuadi-lo de que seus esforços serão inúteis. Mas acontece que nesse caso já não se trata de razão: trata-se de um espasmo. Levemos ainda em consideração que, num detento, quase toda manifestação voluntária da personalidade é considerada crime" Dostoiévski

As coisas que costumamos repetir são reverberações das coisas em nosso mais profundo ser, criando redemoinhos e vórtices como quando colocamos nossas mãos em correntes de água. O que nos cansa nas repetições do dia a dia são coisas que não reverberam em nosso ser, coisas que fazemos por conta de imperativos que nos atravessam. Os traumas nos atormentam porque se reproduzem a nossa revelia, como elementos fantasmas, marcas de encontros violentos tatuadas em nossa carne sensível. Repetem-se pela ligação parasitaria com nosso corpo, que pulsa uma repetição indiscriminada. O fato de nosso corpo absorver tudo se choca com à construção de identidade unitária autônoma que a modernidade defende como fiador do processo racional.

"Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, poderia ser verdade que o sol se levanta regularmente por nunca cansar-se de levantar-se. Sua rotina talvez se deva não a ausência de vida, mas a uma vida exuberante. O que quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com que se divertem de modo especial. Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, ela são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: "vamos de novo"; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia" Chesterton 

Tal construção de identidade esconde uma incorporação oculta - A inoculação em larga escala de ideais processados pelos imperativos civilizatórios, por uma "causa maior", que tentam apassivar e domesticar nossa carne, a transformado em um elemento repetidor de interesses alienígenas. Nossa carne e mente reproduzem medos e anseios cuja origem desconhecemos, tudo para que ajam em nós imperativos que antigamente chamávamos de divinos. 

"Esse anseio é a herança que o cristianismo nos deixou: a necessidade de algo definitivo nos movimentos da vida, necessidade que permanece existindo como um impulso vazio a um fim tornado inalcançável." Simmel

A repetição pulsante, vital, é a prova que corrói e destrói tudo que nos é artificial, desnecessário, inclusive nosso "eu". Ansiedade e angústia, Cila e Caribdis, duas torrentes inexoráveis que nos afligem e consomem... como fazer para não sermos esmagados pela repetição de um querer não assumido, não dito, não vivido? 

Para aqueles interessados na fornalha do eterno retorno:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.
A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" -


Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: "Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:

"Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"

Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" Nietzsche  

A eterna repetição seria um filtro sobre o qual lançaríamos nossa vontade, o que sobreviver será eterno.  

Tudo que nos conecta com a existência se repetirá inexoravelmente. Tudo que precisamos "nos esforçar" para repetir desaparecerá, pois todo "esforço intencional" se afasta do querer - incontornável. A ilusão do livre arbítrio, livre agência, são elementos criados para nos manobrar enquanto acreditamos que somos autônomos. Logo, o que nos cabe nessa vida é apenas encontrar esse batimento existencial que habita todo vivente e dança-la pela eternidade.  

"A vontade é a substância de nossa vida subjetiva, pois o que é absoluto no Ser é um impulso incessante, uma contínua superação de si mesmo. Ele está condenado a permanecer eternamente insatisfeito, mesmo ao esgotar todas as coisas, pois a vontade não pode encontrar fora de si nada que a satisfaça. Só pode encontrar-se consigo mesma, em mil disfarces distintos, sendo impulsionada a continuar em eterna caminhada depois de cada etapa de descanso aparente. Nessa concepção geral do mundo se expressam, ao mesmo tempo, a demanda de um fim último para a existência e a impossibilidade de alcançá-lo. O absoluto da vontade, que é idêntico à vida, não deixa apaziguar-se em nada que lhe seja exterior, pois fora dela nada existe." Simmel

Dessa perspectiva, todo fim é uma pausa e todo encontro é, na verdade, um reencontro.






   

Comentários

  1. Puxa meu caro, sim!, resolutos repetir os passos, aprimorar o ritmo ao sabor das vontades e dançar a vida... Como a dança expressa bem a virtude das repetições! E eis talvez a finalidade... melhorarmos o pulso das nossas vontades, nos rendendo à verdade delas... O que é viver, de fato, a honestidade e a tenacidade das nossas vontades? Ai, ai... Dessa perspectiva, as surpresas da roda são sempre fortuna, posto que provocam nossa vontade, nosso sentir.

    Sigamos todos conectados, a despeito das pausas. E benditos sejam os (re)encontros!

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