A pele ultrapassa toda perfeição

Newton - William Blake

Me impressiona o quanto as religiões negligenciam o corpo. 

Desde que me tenho por gente, vejo mandamentos, regras, alertas, anunciando o quanto o corpo é mesquinho, maligno, egoísta, selvagem, pecaminoso, desorganizador... sendo o responsável pela queda humana em um mundo de corrupção e morte.

A lógica básica dessa ideia vem de Platão quando indica que as coisas físicas são mais imperfeitas, enquanto que as ideias estão em um plano mais alto, sublime, perfeito e imutável. A partir de Platão, pensamos que os problemas de nossas vidas se explicam por uma submissão da mente aos imperativos da corporalidade, fazendo descer à Terra corrupta os altos desígnios da mente racional. Fosse o humano regido pela verdade racional, nenhum crime faria sentido, não teríamos que lutar por uma integridade de caráter. A beleza e a virtude seriam qualidades universais.

"Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por aprender a verdade."

Para alcançar o conhecimento da verdade, Platão demanda uma teologia negativa do corpo. Basta que você suprima este inconveniente para se tornar um bom filósofo. Mais adiante ele nos indica a raiz de todos os males:

"Não tem conta  os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos das doenças intercorrentes, que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ela nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que seja. Mais, ainda: guerras, batalhas, dissenções, suscita-as exclusivamente o corpo e seus apetites. Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo." Fedon

Usar o corpo como bode expiatório para os males do mundo foi uma ideia tão pegajosa que ainda estamos nos debatendo nesse lamaçal. Ainda dizemos "a carne é fraca" e acreditamos que a sabedoria é se afastar dos ímpetos de nossos afetos viscerais, assumindo uma postura mais racional. Quando agimos por raiva - "perdemos a razão". Os afetos e toda sensualidade são alijadas no mesmo pacote do corpo. 

Um caso exemplar da luta feroz contra o corpo é nosso querido santo Agostinho. Esse infeliz conseguiu emplacar a tese segundo a qual o pecado de Adão nos condenou a uma natureza pecaminosa, daí lançando ao fogo infernal os pobres bebês não batizados. Para Agostinho, o corpo desandou pelo pecado de Adão, não pela cosmologia sublunar desajustada pelas turbulências da matéria distanciada do ideal. Deus, o criador perfeito não faria um mundo material desordenado e imperfeito, logo precisamos jogar outra pessoa na fogueira para salvar a pele de Deus. 

Além dessa obra de arte retórica que é o pecado original, deixo-lhes a descrição agostiniana do que seria uma relação sexual pré avacalhação adâmica:

"Os órgãos sexuais teriam sido ativados por uma ordem da vontade, como os outros órgãos. Então, sem ser excitado pelo aguilhão da paixão, o marido teria se deitado sobre o seio de sua mulher, perfeitamente calmo e sem alteração da integridade de seu corpo (sem ereção). Apesar de não podermos prová-lo experimentalmente, não é crível que essas partes do corpo, sem serem movidas pelo turbulento calor da paixão, mas ativadas por uma decisão deliberada no momento desejado, tivessem podido enviar a semente masculina para a matriz, sem atentar à integridade da mulher, assim como o fluxo menstrual pode agora sair da matriz de uma virgem sem perda da virgindade? Pois a semente poderia ter sido injetada pela mesma passagem tomada pelo fluxo. Assim como a matriz poderia ter se aberto para o parto por um impulso natural no tempo certo, mais que pelos gemidos do trabalho, os dois sexos poderiam ter se unido pela impregnação, e a concepção, por um ato de vontade, mais que por um desejo concupiscente."

Essa é a solução que Agostinho arruma para explicar como a humanidade iria se reproduzir de forma "perfeita"..rs Me espanta que essa mente doentia seja um dos fundadores éticos de nossa contemporaneidade. Caso você tenha alguma dúvida é só perguntar ao se redor se existe alguém perfeito moralmente ali... todos vão responder que são uns bosta, faz merda pra caralho, afinal ninguém é perfeito! Não? Essa ideia de que o caráter depende de uma perfeição negada a todos os mortais pecadores é o puro creme do milho agostiniano. Daqui uns séculos, quem sabe, a gente consegue mostrar para as pessoas que caráter não tem nada a ver com perfeição.

Os pais da igreja, os ascetas, os gênios acadêmicos, o iluminado budista, nenhum destes seres destacados um dia conseguirá superar a complexidade vital contida em um fio de cabelo. Por isso eu sempre me espanto quando vejo as pessoas desconfiadas com o corpo, pregando contra o corpo, condenando os desvios dos sentidos, as imagens de escultura, o culto anímico dos povos originários, etc. Até onde conseguimos chegar pela negação do óbvio? Nossa epiderme ultrapassa todas as eras intelectuais da humanidade em todos os tempos... milagrosamente suamos no verão e nos arrepiamos nas noites frias. Afetos adormecidos em camadas perdidas sob dezenas de milhares de anos retornam à vida em uma fração de segundos ao simples toque de uma pessoa querida, como não louvamos isso em nenhum templo contemporâneo?

Por que precisamos encarnar no final das contas? 

Para metabolizar missões espirituais, nos aproveitar da densidade material para nos projetar para os céus da perfeição, pagar pecados, sofrer por encarnações passadas ou simplesmente sofrer a existência como uma prisão/escala para um pós vida/idílio/1ºclasse? Todas as definições do ser corpóreo que temos das religiões, ciências politicas, antropológicas, psicanalíticas, científicas não chegam aos pés de nosso "aparato orgânico" em termos de complexidade e organização; então me espanta ver pessoas acreditarem que "ganhamos um corpo" para pagar um carma, transcende-lo via castração simbólica, alcançando um nirvana, um céu, ganhar um salário de dois dígitos... todas as metas que idealizamos como razão de existirmos não arranham a potência abismal de nossas células. Como podemos acreditar que nosso corpo é um meio defeituoso para realizar um fim filosófico supra lunar(civilizado/rico/europeu/desenvolvido/branco) patético quando nosso corpitcho baqueado/pobre/doente é a realização harmônica de trilhões de variáveis, ancestrais-genéticas-afetivas-coletiva-ecológica-cósmica? 

Como podemos acreditar que o corpo é a origem do mal quando não conseguimos entender o que acontece em um milímetro quadrado de nosso cérebro?

Estamos a anos luz de nosso corpo. Enquanto negligenciarmos a profundidade espiritual de nossos tecidos estaremos perdidos em nossa arrogância, apartados de todos os seres vivos conectados a esse mistério.  

Hoje eu louvo a natureza e o cosmo em sua concretude inexplicável, imediata. 

"Eu estava sentado perto de um riacho numa noite estrelada, iluminada pela lua. Eu senti uma forte presença como se fosse um sentinela me observasse de um morro com pinheiros acima do ribeirão. Pela primeira vez na vida eu não me senti como um turista na natureza. A floresta estava viva, e eu estava em comunhão com ela. Foi quando eu escutei as árvores claramente dizerem para mim em uma só voz: Agora você é um de nós! Eu fiquei comovido. Naquele momento placas tectônicas se moveram em meu interior. Eu senti um senso de pertencimento a todo cosmos, não apenas a uma igreja ou denominação. Eu olhei para o céu cheio de estrelas e comecei a chorar, transbordando de alegria por perceber que eu não precisava mais salvar o mundo. Eu apenas precisava pertencer mais inteiramente a ele."

Dan, um pastor presbiteriano, descrevendo seu despertar ecológico aos cinquenta anos de idade. Era verão, em uma floresta nas Montanhas Rochosas. 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria