A conversão sádica do capitão



Quando o filme tropa de elite foi lançado em 2007 eu estava saindo da escola militar e iniciando a carreira como sargento da aeronáutica. Pude ver ao vivo a transformação do filme concebido como crítica, para o seu oposto - um filme que exaltava o sadismo como política de segurança pública. Essa transformação me parece pouco explorada, ambígua, e a sequência me pareceu uma forma de corrigir a trajetória estranha do primeiro, porém, o estrago já estava feito.

Todas as cenas de tortura policial eram recebidas com celebração, "vou colocar você no saco" e "não atira na cara para não estragar o velório" se tornaram brincadeiras comuns. O vocabulário militar do zero um, aspira, a pica não é mais minha, entuba, etc. se tornaram expressões populares. A cultura militar atingiu o grande público e isso me parece clarear nossa dificuldade em construir uma cultura menos violenta. O grande público respira violência, e a ingenuidade está do lado da elite intelectual que imagina poder oferecer redenção através da crítica - eles querem sangue. 

Capitão Nascimento virou o herói torturador. Isso te lembra algo querido leitor?

A figura do capitão é o protótipo do herói nacional. Um homem bom e dedicado que começa a barbarizar a população da periferia por conta de um estado de coisas que o transcende, o "sistema", o papa visitando o Brasil, pacificar um território com guerras de facções e corrupção policial, enfim, a realidade nada ortodoxa de quem vive no Rio de Janeiro. O capitão não se torna uma máquina de matar por conta própria, mas apenas como uma reação à violência extrema que habita a sociedade... como ordenar o caos sem derramar sangue? O capitão se torna uma figura que suja as mãos para manter a ordem do cidadão comum alienado que não quer lidar com os efeitos colaterais da concentração brutal de riqueza.

A cena em que Matias interrompe um protesto por paz para bater no colega que tinha entregado Neto para os traficantes é outra pérola da desconstrução de um discurso que recentemente é qualificado como "politicamente correto". Matias bate e grita um catártico "bando de burguês safado", ou seja, os movimentos sociais, Ong's que defendem os direitos humanos contra os abusos violentos do Estado, são ridicularizados como um movimento de alienados que não tem autoridade para questionar o status quo da violência nas periferias - porque todos patrocinam a mesma violência sendo "maconheiros" e cúmplices do tráfico.

Moral da história: ninguém tem autoridade para questionar a violência policial, todos são cumplices diretos ou indiretos do que está acontecendo e eles são apenas os peões que fazem o trabalho sujo pela sociedade. 

Ouvindo uma entrevista com Wagner Moura sobre o filme, ele diz que "foi mais difícil defender o filme depois do que filmar" e "ter que dizer que o filme não era fascista me doía muito", isso fazendo referência ao filme anterior do diretor José Padilha, ônibus 174, que narra a trajetória do sequestrador do ônibus, que humanizava a figura que foi pivô da trágica intervenção policial que culminou com a morte da refém Geisa e do próprio Sandro, asfixiado no bagageiro da viatura policial. (Deja vú novamente?) 

O que Wagner Moura perde de vista quando comenta o equívoco dos críticos que tentam qualificar o filme como uma apologia da tortura policial é o irônico desfecho do filme quando proporciona ao público um catalizador/conversor da indignação popular em um sadismo gratuito posteriormente concretizado pelo outro capitão. O discurso de Bolsonaro mimetiza milimetricamente as lições extraídas do primeiro Tropa de Elite, vomitando coisas como o "morreu pouco", "não sou coveiro" e instrumentalizando o aparato policial para executar o "trabalho sujo". A obra de arte foi apropriada pelo público e se tornou o oposto do que o diretor havia imaginado - uma peça de marketing sádico, pavimentando o caminho para a política necrófila de Bolsonaro.

Parece que a tragédia ocorrida por ocasião do Ônibus 174, quando o policial erra o tiro acertando a refém acontece de forma inconsciente pela obra cinematográfica de José Padilha. A vítima Geisa estava nos braços do sequestrador, foi atingida por um tiro do policial que deveria salvá-la e também por 3 tiros de Sandro. O filme Tropa de Elite deveria ser uma crítica da brutalidade policial, acaba instrumentalizando o sadismo popular e acaba por legitimar a atuação da polícia, piorando o cenário para aqueles que estão com seus corpos no meio do caminho entre a polícia e os criminosos. A intervenção equivocada do ex capitão do BOPE Marcelo Santos, seu silêncio e suas lágrimas revelam o saldo real de nossa política de segurança pública: Geisa morta, Sandro asfixiado na viatura e capitão do BOPE no limiar da depressão suicida.

“'Baseado no entendimento do tribunal do júri, que absolveu os policiais, a quase totalidade da sociedade carioca queria estar naquela viatura do Bope, enforcando Sandro do Nascimento', observa Pimentel. 'Essa execução extrajudicial exprimia a vontade do povo, que clamava por vingança. O policial apertou o pescoço do rapaz com a energia da massa, que queria o linchamento', acrescenta Soares. 'Foi um assassinato respaldado por toda a sociedade', finaliza Yvonne." Reportagem G1 sobre os 10 do sequestro do ônibus 174

Rodrigo Pimentel é o ex militar do BOPE que escreveu o livro Elite da Tropa que inspirou o filme e Yvone Bezerra de Mello é a mulher chamada por Sandro durante a negociação, uma artista plástica que organizou um projeto social que acolheu Sandro após a chacina da candelária, sendo ele uma das crianças sobreviventes do incidente carioca em 1993. Todos os entrevistados concordam com o desfecho, parece que a justiça foi feita. Acontece que a brutalidade policial que atuou indiretamente na chacina da candelária, que contava com ex pms entre os acusados, e que no episódio participou ativamente do desfecho trágico não é tematizado como causa da tragédia. A morte de Sandro na viatura é também uma derrota civilizatória, assim como a absolvição dos seus algozes, tudo contribui para a perpetuação da violência cega que destruiu Geisa.  



A cena da morte de Geisa é uma cena que representa em estado bruto o encontro nefasto entre brutalidades dos marginalizados e de policiais, uma dança macabra que vitimiza todos nós. 



 

   

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