Por um encontro possível

Foto de uma escola canadense criada para "aculturar" crianças indígenas 
 


"Você já sabe o suficiente. Eu também. Não é de conhecimento que precisamos. O que está faltando é a coragem para compreender o que nós sabemos e tirar conclusões."

― Sven Lindqvist, Exterminate all the Brutes - livro tema do documentário Exterminem todos os brutos de Raoul Peck (HBOmax) 

Quando os colonizadores chegaram na costa das Américas, ocorreu um grande desencontro. Os europeus entenderam que estavam diante de uma grande oportunidade de negócios, uma Índia elevada a décima potência que poderia dar aos colonizadores vantagens comerciais incalculáveis. Os povos originários foram chamados de índios - um nome genérico. Dali em diante seriam todos um povo exótico, um estorvo colocado entre os europeus e seus produtos. Os índios não foram encontrados, foram dizimados. Seria como a gente andando na rua e cumprimentando alguém que sorri, porém, para uma pessoa atrás da gente. Quando alguém me sorri e cumprimenta eu olho para trás primeiro - é comigo? O primeiro grande desencontro - de um ser vivo com um homem colonizador (um ser mórbido/parasitário) 

"Tão afáveis, tão pacíficos, são eles" escreveu Colombo ao rei e à rainha da Espanha, "que juro a Vossas Majestades que não há no mundo uma nação melhor. Amam a seus próximos como a si mesmos, e sua conversação é sempre suave e gentil, e acompanhada de sorrisos; embora seja verdade que andam nus, suas maneiras são decentes e elogiáveis."

Em seguida, Dee Brown arremata: Claro que tudo isso foi tomado como sinal de fraqueza, se não de barbárie, e Colombo, sendo um europeu bem intencionado, convenceu-se de que o povo deveria "ser posto a trabalhar, plantar e fazer tudo que é necessário e adotar nossos costumes".

Na época da chegada nas américas o continente europeu debatia o pecado original como nunca. Fico matutando como foi para esses padres aportarem em um lugar idílico e com todo mundo relax e pelado. Isso depois de defender com unhas e dentes o pecado de Adão como causa da perdição da humanidade e de usar esse mesmo pecado para punir e controlar seus fiéis, como eles fizeram para explicar que os povos que aqui viviam eram pecadores? Eles andavam pelados! Se eles não "percebiam" que estavam nus, então eles encarnavam a inocência pré adâmica e deveriam ser reverenciados de joelhos por toda a igreja pecadora cristã..rs Só que não. Temos aqui um desencontro moral - seres vivos e conectados com a natureza e o homem pecador colonizador que pretende converter os inocentes para seu mundo de pecado e má consciência. 

Citando um dominicano, Georges Minois escreve em sua obra As origens do mal:

"Se não há traços do pecado original nesses índios, isso recoloca em causa, pela primeira vez, a unicidade e a igualdade do gênero humano: nem todos os homens descenderam de Adão. Isso seria uma verdadeira revolução antropológica, equivalente à revolução galileana na astronomia."   

Georges Minois cita outro teólogo, "esses povos vivem como animais, portanto, a primeira pessoa que os conquistar tem o direito de explorá-los, pois são escravos naturais" e conclui: "o pecado original vem em socorro dos conquistadores, pois teria sido difícil justificar a exploração dos homens inocentes de qualquer mácula, efetuada pelos filhos de Adão corrompidos pelo pecado original."

Este grande desencontro continua todos os dias, quando acordo e abro os olhos - esse desencontro se perpetua. Quando olho no espelho vejo apenas cana de açúcar. Todos que querem ser bem sucedidos, felizes e bem estabelecidos nessa economia de mercado contemporânea precisa se transformar em uma monocultura alienada, em algo explorável. Eu e meus conterrâneos não serão nada se não se transformarem em um vegetal verde e de fácil manejo, resistente à pragas, que saiba se virar..rs Você acredita em quê? Lê o quê? Ama o quê? Netflix e trabalho - amém

Anna Lowenhaupt Tsing é uma antropóloga americana. Em seu livro O cogumelo no fim do mundo, ela comenta como uma espécie de cogumelo, o Matsutake, consegue ser o mais valioso do mundo e ao mesmo tempo não se deixa ser domesticado, pois sua produção depende de inter-relações complexas entre ele e a flora local, coisa que o colonizador não conseguem reproduzir em larga escala. 

Já a cana de açúcar, ela escreve: 

"A plantação colonial europeia é um ícone de um trabalho de 'escalabilidade'. No século 16 e 17 a plantação de cana de açúcar no Brasil, por exemplo, Portugueses descobriram uma formula que podia ser expandida sem dificuldades. Eles desenvolveram elementos autônomos, partes de projeto intercambiáveis, como segue: extermine a população local de pessoas e plantas; prepare a terra, agora vazia e sem habitantes; traga trabalhadores e plantações exóticas e isoladas para a produção. Este modelo de paisagem se tornou uma inspiração para a posterior industrialização e modernização...    

Considere os elementos da plantação de cana de açúcar portuguesa no Brasil colonial. Primeiro, a cana, como os portugueses a conheciam: cana de açúcar era plantada colocando um pedaço da planta no solo e esperando que ela crescesse. Todas as plantas eram clones, e europeus não tinham ideia de como reproduzir essa cultura da Nova Guiné. A possibilidade de troca, não perturbada por condições de reprodução, era uma característica da cana europeia. Carregada para o Novo Mundo, tinha raras interações entre espécies. Assim como as plantas, o projeto absorvia esses elementos de autonomia, insensíveis a interações dos encontros."

O trabalho escravo segue o mesmo projeto: extração e desterro, destruição de todos os elementos culturais e históricos, nome apagado, toda dignidade era varrida para permanecer apenas os músculos produtivos dos trabalhadores. Isso poderia ser escalonado e calculado para maximizar a produção das colônias, gerando uma lucratividade enorme para as metrópoles europeias.

A luta pelo reconhecimento típica de uma teoria crítica da escola de Frankfurt não faz sentido nenhum em uma plantação de indivíduos idênticos, esvaziados... "o reconhecimento" é um problema europeu. Não existe alteridade em uma plantação de cana de açúcar. Quando estudamos emancipação, dialética senhor e escravo, alienação em Marx, psicanálise, e lutamos para nos tornar sujeitos, estamos novamente nos desencontrando. Porque novamente estamos nos esforçando para nos posicionar em um tabuleiro construído fora de nossa territorialidade, tentando adentrar uma festa para o qual não fomos convidados.  

O senhor não quer nos objetificar, ele quer nos exterminar. Buscar reconhecimento neste olhar é uma luta inútil. 

O grande problema do terceiro mundo é conseguir um encontro genuíno, conseguir existir para além do próprio genocídio. A morte e a devastação é o nosso a priori. Buscar uma emancipação nesse cenário é um eterno flerte com o niilismo. Não caio mais nessa. Não quero me emancipar, quero um solo, quero encontros e interações transformadoras. Se o senhor europeu não nos reconhece, procuremos um encontro decente. 

"'Nós, ocidentais, decidiremos quem é um bom ou um mau nativo, porque todos os nativos possuem existência suficiente em virtude de nosso reconhecimento. Nós os criamos, nós os ensinamos a falar e a pensar, e quando se revoltam eles simplesmente confirmam nossas ideias a respeito deles, como crianças tolas, enganadas por alguns de seus senhores ocidentais'. É isso, com efeito, o que os americanos sentem em relação a seus vizinhos do sul: que a independência é desejável para eles, desde que seja o tipo de independência que nós aprovamos. Qualquer outra coisa é inaceitável e, pior, impensável." 
Edward W. Said    

Nossa luta é uma luta pelo solo, todo resto é uma derivação infinita, desencontrada. Não existe luta pelo emprego, por uma identidade/sexualidade/religiosidade/dignidade sem uma relação com o solo. A luta se estabelece em termos de solo porque o outro europeu expandido sempre nos perceberá como coisas a serem exterminadas. Essa é uma lição aprendida pelo cogumelo Matsutake, não devemos buscar um reconhecimento dos exterminadores, devemos buscar encontros essenciais, relações vitais e nunca abrir mão disso. 

Sobre a qualidade inapreensível dos encontros, deixo-lhes este exemplo do livro Os ensinamentos de Don Juan, de Carlos Castaneda:

"Don Juan sussurrou para mim, dizendo que iríamos para casa de um amigo que teria sete mescalitos para mim.
Eu perguntei, 'você não tem nenhum que possa me oferecer, Don Juan?'
'Eu tenho, mas eu não posso oferece-las para você. Veja, outra pessoa precisa fazer isso.'
'Pode me dizer por que?'
'Talvez você não seja agradável para 'ele' e 'ele' não irá gostar de você, e, então, você nunca conseguirá conhecê-lo de uma maneira afetiva, como alguém normalmente faria; e assim nossa amizade seria desfeita.'
'Por que ele não iria gostar de mim? Eu nunca fiz nada para ele.'
'Você não precisa fazer nada para ser aceito ou rejeitado. Ou ele te aceita ou te lança fora.'
'Mas, se ele não me aceitar, não haveria nada que eu pudesse fazer para fazer ele gostar de mim?'
Os outros homens que participavam da cerimonia ouviram e começaram a rir.
'Não! Eu não consigo pensar em nada que alguém possa fazer' disse Don Juan.

Don Juan tem o cuidado de não induzir e contaminar o encontro de Castaneda com a erva Mescalito, pois compreende que este encontro precisa ser livre e espontâneo, existe um cuidado para propiciar um bom encontro, um encontro possível. Esse cuidado com o encontro é algo profundamente enraizado nos povos originários, um respeito que permeia todas as relações, porque eles sabem que tudo que existe se relaciona e precisa ser respeitado, inclusive quando não somos aceitos. Não existem 'seres' de primeira classe e seres descartáveis para os povos originários, essa grandiosidade subjetiva abarca tanto outros humanos, quanto animais, plantas, territórios, rios e espíritos.  

Quando não somos aceitos, não devemos lutar por aceitação. Buscar aceitação é uma quimera típica de um quadro de coisas que explora o sentimento de desamor e o medo da rejeição.

O que vai acontecer quando nos encontrarmos com o mundo? Não sei. Existem bons encontros, como o de Castaneda e Don Juan, ou de Raoul Peck e Sven Lindqvist ou de Anna L. Tsing e o cogumelo Matsutake... tais encontros florescem obras maravilhosas. 


Link da matéria comentando o processo de destruição das culturas indígenas em escolas católicas do Canadá:
https://www.theguardian.com/world/2015/jun/06/canada-dark-of-history-residential-schools



 



Comentários

  1. Meu encontro com o desafio do rapé... Que solo me cabe? Que solo?

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  2. O solo nos cabe, nos aceita... precisamos desse encontro primordial

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