O monoteísmo como contrareligião


 "Diferente de Moises, Aquenaton, Faraó Amenofis IV, foi uma figura exclusivamente histórica e não de memória. Logo após sua morte, seu nome foi apagado da lista dos reis, seus monumentos foram destruídos, sua palavras e representações foram destruídas, e quase todo traço de sua existência foi apagada. Por séculos ninguém sabia dessa extraordinária revolução. Até sua redescoberta no século 19, praticamente não havia memória de Aquenaton. Moises representa o caso reverso. Nenhum traço de sua existência histórica jamais foi encontrada." Jan Assmann 

Meu interesse por Jan Assmann surgiu em uma leitura de O Zelo de Deus, uma crítica do monoteísmo empreendida por Peter Sloterdijk, quando este autor elogia a competente reconstrução da história egípcia feita por Assmann em sua obra Moisés o egípcio. O monoteísmo, junto com o mal e o pecado original, estão bem no centro da minha investigação particular. 

Por que essa obsessão pelo monoteísmo? Eu sinto uma raiva abissal pelo pensamento unívoco universalista. Tal raiva foi lentamente alimentada por inumeráveis afluentes, esbarrões, intimidações, micro humilhações, invalidação e negação de minha alma. Graças a esse infortúnio carmico/traumático, adquiri a capacidade de detectar o cheiro de pessoas verdadeiras a quilómetros. Imagino que Aquenaton tenha sido o primeiro faraó verdadeiro da história da humanidade e entendo perfeitamente porque os egípcios apagaram seu reinado dos registros. 

A ironia é que algumas mutações históricas aconteceram e infelizmente hoje temos o blend catastrófico de ciência e cristianismo que poderia bem representar a atualização da tentativa de Aquenaton de colocar seu culto centralizador novamente no mapa da existência.

Eu sou o egípcio que lamentou na estela de Tutancamon, filho e sucessor de Aquenaton:

Os templos dos deuses e deusas estão desolados 
De Elefantina tão longe quanto os pântanos do Delta,
Seus lugares sagrados estavam para desintegrar,
Se tornaram montes de lixo, cobertos de cardos.
Era como se seus santuários nunca tivessem existido,
Suas casas eram como lugares pisoteados.
A terra estava gravemente doente.
Os deuses amaldiçoaram esta terra.
Se um exército fosse mandado para a Síria para estender as bordas do Egito,
Não iria vencer de maneira alguma.
Se alguém orasse para deus pedindo ajuda,
Ele não responderia.
Se alguém pedisse ajuda da deusa,
Ela da mesma forma não responderia.
Seus corações cresceram fracos em seus corpos, 
Porque eles destruíram o que havia sido criado. 

A destruição do antigo politeísmo egípcio por Aquenaton é descrito por Assmann como a primeira "contrareligião". A percepção do monoteísmo como uma religião que se insurge contra uma religião vigente é fundamental para entender as marcas de nossas crenças fundamentais, já que as bases do que entendemos como início, ou gênesis, é na verdade uma negação de um mundo religioso mais antigo.

A contrareligião se apoia sobre uma estratificação da experiência existencial, ocultando dentro de seus mandamentos e rituais o paganismo que ele ostensivamente rejeita. Isso se ilustra pela proibição da construção de imagens de escultura, ter outros deuses, sacrifício de animais sagrados para os egípcios(carneiro-Amon e o touro-Osíris). 

Até mesmo o mito fundador do êxodo do Egito possui versões egípcias nos quais os egípcios expulsam um povo de seu território. De acordo com Manetão, citado por Josefo, uma profecia solicitou ao faraó a purificação da terra da contaminação dos leprosos. Os leprosos se reuniram em uma cidade chamada Avaris, capital de Hicsos e, sob a liderança de Osarseph(Moises), invertem as leis egípcias, retornam para o Egito e dominam o território por 13 anos, destruindo templos e proibindo o culto dos antigos deuses. Amenofis e seu neto Ramses se unem e conseguem expulsar os leprosos e seus aliados, retomando o domínio do território Egípcio.

O olhar atento para a história egípcia é algo raro, pois geralmente ela é distorcida pelo relato bíblico e pela herança de narrativas que projetavam sobre os egípcios certas esperanças místicas europeias. Tudo isso dificultou a percepção do contraste entre o monoteísmo e cosmoteismo egípcio antigo. 

O "afundamento" da experiência contrareligiosa cria a ideia de uma religião que demanda um reconhecimento que deveria surgir de dentro da alma, e não uma coisa que ocorria no mundo das aparências, pois Deus se tornara invisível. Essa transição de uma religião prática e sensual para uma introspectiva e ideal se revela uma revolução em termos da historia da mente e da alma.

Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração,
e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças.
E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração;

Deuteronômio 6:4-6

"Eles estão lá para todos verem, na forma do sol e da lua, agua e ar, terra e fogo, vida ou morte, guerra e paz. Eles podem ser negligenciados, não venerados, desobedecidos de várias formas... mas ninguém pode escolher iniciar ou terminar o relacionamento com eles. Nós somos irrevogavelmente nascidos em tais relações, portanto não podem ser objeto de uma escolha pessoal. Contrareligiões, contudo, tem suas raízes em revelações que não podem ser vistas nem experimentadas, mas simplesmente aceitas 'com todo o seu coração, com toda sua alma e toda a sua força'. Assmann 

Quando os judeus adoram o bezerro de ouro, relaxam e 'caem' novamente na idolatria dos egípcios, acabam sentindo a fúria divina manifesta nas reprimendas e punições de Javé através de Moises. Algo totalmente estranho para uma cultura politeísta, tendo em vista que todos os deuses tinham nomes correspondentes e intercambiáveis com deuses de outras civilizações. A negação da cultura egípcia precisa de contínuos reforços, o que constitui o motivo da fidelidade e da culpa se tornarem preocupações vitais, uma força repressora que move o coração do monoteísmo. A culpa pelo desvio, as exigências morais severas, o banimento das imagens alimentam uma construção de subjetividade que acaba mantendo a cultura egípcia encriptada dentro da cultura judaica, sendo essa uma gênese possível de nosso inconsciente.

"A 'proibição Mosaica' constitui o ponto de Arquimedes através do qual a religião icônica deve ser desmascarada como uma ilusão, através do qual Freud pode desmascarar a religião como definitivamente ilusória. O progresso em intelectualidade consiste em uma gradual emancipação da limitações da idolatria que mantem nossas mentes aprisionadas. Revisando o banimento das imagens, Freud revela essa luta por emancipação intelectual como um projeto profundamente judaico, e ao mesmo tempo, uma tradição que ele mesmo assume como herança e continua em sua psicanalise. Se é a missão da humanidade avançar intelectualmente, então os judeus precisam ser considerados a vanguarda desse movimento." Assmann

Assmann se afasta de Freud em relação à leitura de Moises enquanto pai da nação judaica disfarçado de sacerdote de Aquenaton, pois percebe que esta versão é legada de uma ideia reproduzida por Schiller e o deísmo alemão. Assmann elenca as diferenças entre o monoteísmo de Atom e o de Javé, deixando de lado a pretensão Freudiana de explicar uma origem genética a tal "compulsão religiosa", para focar os efeitos das reverberações traumáticas da negação da religião/cultura egípcia nos acontecimentos do período do governo de Aquenaton e da ocupação de Hicsos e como essa memória reprimida pode ser resgatada por uma análise do monoteísmo.   

Ao fazer isso acaba desdobrando os mecanismos de subjetivação de nossa cultura monoteísta, algo que até a pouco julgávamos universais e transcendentais, mas que na pratica se prova o puro creme do ressentimento. Seria demais entender o sonho universalista científico pelo desvelamento metódico da natureza na mesma chave do deus único judaico que elimina o imagético em prol de uma convicção racional?







 


 

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