Quando as coisas nos olham


Floresta de Faias - Gustav Klimt

“Numa floresta, repetidas vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as árvores que olhavam para mim, que me falavam... Eu lá estava, escutando... Creio que o pintor deve ser transpassado pelo universo, e não querer transpassa-lo... Aguardo ser interiormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir”. Merleau-Ponty, citando Paul Klee.

Em uma conversa dessas que temos sábado de manhã, sabe, sábado de manhã ensolarado é um momento especialmente feliz, principalmente aqui em São Paulo, lembrei de uma leitura que fiz do “O olho e o espírito” de Merleau Ponty e por isso decidi retirar esse texto do fundo do armário e relê-lo para matar a saudade.

Passando os olhos pelas primeiras paginas, lembrei de uma imagem que surgiu em meus sonhos alguns anos atrás, ocasião em que comprei a edição dos pensadores dos fenomenólogos, em que eu caminhava por uma floresta de arvores finas e altas e cujo solo estava coberto de folhas marrons e o horizonte escurecia em um degradê silencioso. Senti, pela primeira vez, que a floresta parecia passear dentro de mim e que as árvores olhavam para meus recantos escuros. Descobri que o olhar não é algo que acontece unilateralmente, mas uma espécie de canal sobre o qual os mais variados intercâmbios acontecem.

Acredito que de uma maneira estranha as coisas parecem habitar nosso interior, criam raízes e se desenvolvem a nossa revelia, mas apenas percebemos este espetáculo quando deixamos um pouco de acreditar em nossa individualidade, ou como dizia Nietzsche quando afirmou que acreditamos em Deus porque acreditamos na “gramática”, com suas estruturas, sujeitos-objetos... penso que grande parte de nossas carências e medos se alimentam de uma visão de mundo que nos isola em uma contemplação rarefeita das coisas, onde o Eu é um observador inacessível e autônomo.

O que seria o amor senão esta descoberta de que não somos? Descobrir que rios passam por dentro de nossa alma e que não sabemos de onde vem nem para onde vão e que de vez em quando eles enchem e arrastam varias de nossas certezas, ai ficamos as margens chorando pensando: cadê a casa que ficava aqui? E aquela ponte que eu costumava atravessar, sumiu! Agora não consigo atravessar para o meu outro eu..rs

Depois de constatar que não somos assim tão responsáveis pelo que fazemos nem pelo que somos, podemos tirar uma folga e contemplar um quadro abstrato, ou ver uma natureza morta de Cézanne e apreciar esses postais de lugares estranhos, lugares onde as cores passeiam em liberdade por nossas almas, deixando folhas e surpresas pelo chão. Descobrimos que os quadros também nos olham e que não somos assim tão monótonos quanto imaginávamos ser.

Frequentemente sofremos por estarmos presos a imagem que temos de nós mesmos.

Para encerrar, uma última citação de Klee, por Merleau-Ponty

"Sou inapreensível na imanência..." 

Comentários

  1. Realmente, esta auto-imagem nos cerca sorrateiramente, nos envolve e aprisiona sem que nos demos conta. Que perigosos somos...

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