Quíron e a cura de nossas dores

Aquíles e Quíron - John Singer Sargent
 
Grande parte de vosso sofrimento é por vós próprios escolhido.
É a amarga poção com a qual o médico que vive dentro de vós cura o vosso Eu doente.
Confiai portanto no médico e bebei seu remédio em silêncio e tranquilidade:
Pois sua mão, embora pesada e dura, é guiada pela suave mão do Invisível.

Kahlil Gilbran, O Profeta - citado por Melanie Reinhart

Este é um post difícil. Falarei sobre Quíron e seus significados no campo da astrologia, principalmente no que este astro tem a falar sobre minha vida. Algo bem superficial, só para dar a vocês, meus ilustres amigos, uma perspectiva nova a respeito do que a astrologia pode trazer de contribuição para nossa jornada de auto conhecimento.

Escrevo na qualidade de estudante, então, me perdoem qualquer gafe e me corrijam se eu lhes passar alguma informação imprecisa. Utilizo o livro "Quíron e a jornada em busca de cura", de Melanie Reinhart, como referência para este post.

Escolhi este astro em especial por possuir uma presença muito forte dele em meu mapa natal. Ele está no meio do meu céu, se relacionando com quase tudo e quanto mais estudo a seu respeito, mais me surpreendo pelas semelhanças com minha maneira de ser.

Para começar, este corpo celeste é grande demais para ser um asteroide e pequeno demais para ser um planeta. Sua órbita foi descoberta entre Saturno e Urano, o que significa que ele habita um estado intermediário entre os planetas Trans-pessoais(mais afastados do Sol) e os Planetas Pessoais. Existe a hipótese deste "planetoide" perder sua órbita, sendo ejetado de nosso sistema solar, o que lhe confere uma característica errante e exilada.

Na mitologia, Quíron é um centauro, um ser intermediário entre o humano e o animal, entre o racional e o instintivo. É filho de Crono com a ninfa Filira e a descrição de seu nascimento indica uma rejeição original, pois Filira ficou tão horrorizada com o fruto de seu ventre que pediu aos deuses para se transformar em outro ser, abandonando Quíron à própria sorte. Posteriormente Quíron é adotado por Apolo, recebendo seus ensinamentos.

O centauro se torna um símbolo de sabedoria e encarna a figura do mestre, sendo o tutor dos grandes heróis da mitologia grega, dos quais se destaca a figura de Hércules. O ponto alto de sua mitologia se encontra no episódio em que é ferido por Hércules com uma flecha embebida pelo veneno mortal da Hidra. Em todas as variações, este mito possui algo em comum: Quíron é ferido por acaso, enquanto tenta auxiliar um amigo. Esta ferida é incurável, pois o Centauro é imortal e suas constantes tentativas de se curar fazem com que ele se aprofunde nas artes medicinais, o transformando em um grande curador das feridas alheias, mas incapaz de remediar a própria.

O local do mapa natal em que esta figura se localiza aponta para uma ferida profunda, ao redor do qual normalmente construímos defesas. Estas defesas são variadas, criativas, e atuam de forma inconsciente, como quando machucamos um dedinho do pé e ficamos com receio de pisar firme e acabarmos topando em outro lugar. Com o tempo passamos a andar torto, com um jeito estranho, e outros lugares começam a doer, a se sobrecarregar. A defesa ao qual nos agarramos acaba por nos sabotar, nos tornando mais vulneráveis.

Em um mito grego narrado por Clarissa Pinkola Estes em seu "Mulheres que correm com lobos", Filóctetes recebe um arco mágico de Hércules, posteriormente se fere no pé em uma batalha. Este ferimento não se cura e devido ao cheiro e a imagem terrível de seu sofrimento, ele é abandonado pelos amigos em uma ilha deserta para morrer. Mais tarde um jovem decide roubar o arco mágico e se depara com a imagem agonizante do velho retorcido em dores. "E algo no rapaz - ele não sabia dizer o que - de repente o fez chorar", incapaz de deixar o homem nesta situação, ele limpa sua ferida, o alimenta, e o retira da ilha para ser tratado por Esculápio.

A dor não é boa nem ruim, ela apenas aponta para algo, como um sintoma. Normalmente exilamos nossas dores e só nos lembramos delas quando o mau cheiro alcança nosso personagem civilizado. Podemos perceber pelo mito de Filóctetes que o importante é a compaixão, não a cura. Compaixão por nós mesmos em um primeiro momento, por nossas dores profundas, por nossas fragilidades, e isso só pode acontecer quando olhamos a ferida de frente, contrariando o asco e o medo.

"Através do processo de educação e socialização, somos habitualmente incentivados a desenvolver essas qualidades; nossa dor profunda e nossa capacidade de ferir têm mais probabilidades de ficar em segundo plano e de permanecer enterradas... Para sofrear nossa dor e dominá-la, podemos desenvolver nossa "metade superior" à custa da "metade inferior" - Para utilizar a imagem de Quíron, cuja metade superior era representada pelo curador sábio, e a metade inferior, pelo animal ferido. Podemos vir a ser pessoas educadas, sofisticadas e elegantes ou idealistas e cheias de nobres aspirações e ignorar, a despeito de tudo isso, o animal ferido sobre o qual nos apoiamos, até que alguma doença ou crise nos force a tomar consciência de nossa dor." Quíron - pg. 96

Quando eu me tornei crente, elegi minha mãe como a concretização de tudo o que é reprovável em um ser humano. Ela não acreditava em nada, brigava com meu pai todos os dias, tinha voltado a fumar, tinha crises e mais crises nervosas. Eu via isso tudo como um egoísmo sem medidas e tentava demovê-la deste modo de viver, acreditava que somente quando ela se arrependesse de tudo isso e mudasse eu poderia amá-la. Até então, odiava-a. Esse ódio aumentava junto com a minha aplicação na igreja, e quanto mais eu estava certo, mais distante eu estava dela. Esse ódio me distanciava dos amigos e do resto da humanidade, até chegar um ponto em que eu não me aguentava mais..rs

Até chegar o dia  em que ouvi uma pregação na igreja que me impulsionou ao perdão e a algo muito mais difícil, a pedir perdão para minha mãe.

Era dia das mães, comprei um cartão e escrevi a carta mais difícil da minha vida.
Pedia perdão por julgá-la e por me antagonizar tanto, por odiá-la.
Isso foi a coisa mais poderosa que me aconteceu e mudou para sempre a minha alma.

Porque amar a minha mãe e aceitá-la significava não apenas uma reconciliação familiar, mas uma reconciliação comigo mesmo e com o que eu possuo de discrepante, "instintivo" e reprovável. Acontece aos signos fixos uma tendência forte a se enrijecer em torno de posturas "corretas" e a se fecharem em si mesmos, perdemos toda flexibilidade e frequentemente ferimos àqueles a quem mais amamos.

Quíron só conseguiu a cura quando Zeus aceitou trocar sua vida pela libertação de Prometeu, ou seja, o centauro só consegue sua cura quando perde a imortalidade. Isso não faz sentido para nós, porque enxergamos a morte como um evento puramente negativo, mas a morte é uma parte importante do ciclo vital. Morrer aqui significa aceitar nossa precariedade e permitir que a vida opere em nós seus desígnios, e isso sempre significa contrariar nossa vontade empedernida.

A cura da ferida de Quíron se relaciona com o veneno que lhe deu origem, por isso relaciona-se o centauro à cura homeopática, indicando que "ali onde existe o perigo também a salvação é pródiga"(Hölderlin). Disso tenho a dizer que todas as vezes que enfrentei meus medos, eu me quebrei em várias partes, curiosamente eu não morria. Isso porque a dor vinha muito mais de dentro do que das situações e das pessoas, o sofrimento era algo da minha alma e quando passava pelas situações, percebia que estava tudo bem, não havia o que temer.

Encerro por aqui com uma citação de D H Lawrence, citada por Melanie Reinhart:

E se na mutabilidade da vida do homem
sofro aflições e penúria,
meus punhos parecem quebrados e meu coração inerte
e a força esvaída, e minha vida
é apenas a sobra de uma existência...
então devo saber
que ainda estou na mãos do Deus desconhecido;
ele me submete a seu próprio olvido
para me lançar numa nova manhã, um homem novo.

*olvido: descanso, repouso, esquecimento



Comentários

  1. Excelente, meu caro!
    A citação do Profeta foi perfeita!
    Vc está se mostrando cada vez mais aberto nas conversas, mas nos posts está muuito mais!! rs

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    1. Não sei se ando dramático demais...rs mas estou soltando minhas pérolas, e me surpreendendo com as coisas que eu escrevo, leio depois de um tempo e sinto um estranhamento positivo..kkkkkk

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