A Integração do Feminino na Odisseia

O julgamento de Paris - Antoine Watteau

"Foi Samuel Butler quem disse que a Odisseia foi provavelmente escrita por uma mulher. A mudança no modo e humor da Ilíada e seu estilo "guerra e conquista" predominantemente masculino para a Odisseia, onde aprendemos sobre a vida do ponto de vista das deusas, é muito importante. Eu quero contar a estoria da Ilíada e da Odisseia com uma certa inflexão de minha própria autoria."
Joseph Campbell - Goddesses

Essa é a primeira citação de algumas que eu pretendo trazer para iluminar este tema que eu encontrei neste livro encantador de Joseph Campbell que narra a trajetória das mutações que o culto das divindades femininas passaram na antiguidade sob invasão de culturas centradas em divindades masculinas. Esse encontro com Joseph Campbell vem em um momento que tento entender a relação dos gêneros sob um ponto de vista mais amplo que o debate feminista coloca, pois acredito que os problemas e dilemas enfrentados pelo feminino não se resumem ao nosso contexto histórico, mas abrangem um substrato mais profundo de nossa existência. A supressão do feminino atinge a todos, homens e mulheres, afeta a natureza, o clima, a espiritualidade, a arte, portanto quero contribuir com algo que eu acho importante para este assunto.

Essa comparação de Joseph Campbell entre Ilíada e Odisseia relata como o feminino se reintegrou no contexto mítico do universo grego, agora, o que isso pode acrescentar a nós hoje eu deixo para que você leitor avalie por você mesmo. Eu achei maravilhoso, e me espanto de nunca ter encontrado isso antes, por isso acordei cedo e fui pra biblioteca só pra escrever esse post pra você.


A Ilíada e o princípio masculino.

"Quando Paris é chamado para julgar as três deusas, diz Jane Harrison em seu maravilhoso livro Prolegômenos para o Estudo da Religião Grega, acontece uma redução da Deusa ao masculino. Porque nós temos de um lado as três maiores deusas clássicas, os três aspectos de uma Divindade que é manifesta nesses três modos e de outro temos Paris, um languido jovem, julgando-as como se estivessem em um concurso de beleza em Atlantic City! E as deusas lutam pelo seu voto oferecendo presentes e promessas." pg-144

A Ilíada narra um conflito épico entre os gregos e troianos, uma batalha que dura dez anos e se inicia pela episódio do julgamento de Paris, quando ele decide pela beleza de Afrodite em detrimento de Hera e Atena, recebendo como presente Helena, a esposa de Menelau. Assim, a causa do conflito de Tróia é este "quem vai ficar com Helena", os deuses principais desta trama são Zeus, Apolo e Ares, e toda as batalhas são uma espécie de "he-man stuff" como diz Campbell. Menelau, rei de Esparta, pede ajuda a seu irmão Agamenon, dizendo: "Este rapaz troiano fugiu com minha esposa!" ao que Agamenon responde: "Isso não se faz, nós precisamos trazê-la de volta!". Temos aqui uma disputa pela esposa como por um objeto.

Campbell acrescenta que o conflito de Troia capta os princípios masculinos, como o companheirismo entre guerreiros, "campeões se reconhecem como iguais". Para os gregos os inimigos são respeitados como "irmãos de armas", por isso o ícone de nobreza da obra é Heitor o troiano e não Aquiles. Outro princípio masculino seria a bravura, retratada na despedida de Heitor, quando sua mulher implora com o filho nos braços para que ele não vá para o duelo, Heitor responde: "nenhum homem evitou a morte pela covardia". O momento em que Heitor caminha para a morte é semelhante ao momento em que Arjuna avança para a batalha aconselhado por Krsna na obra Bhagavad Gita, o guerreiro deve cumprir seu destino sem medo e sem buscar uma recompensa pessoal.

Com o fim da batalha os heróis retornam para seus lares. Menelau reencontra sua esposa, Agamenon é morto por sua esposa porque sacrificou a filha Ifigênia para trazer os ventos favoráveis as embarcações gregas. Orestes é colocado em dilema, pois precisa matar a mãe para vingar o sangue de seu pai, o que põe em primeiro plano o conflito de linhagens de tradição grega, a matriarcal, na qual Orestes não seria obrigado a matar a mãe, e a patriarcal, que o obriga a vingar a morte do pai. Com um sacrifício no templo de Delfos, Orestes é poupado de ser perseguido pelas Eríneas, deusas que representam os poderes ctônicos do mundo inferior e a linhagem materna. O perdão de Orestes é uma expressão da consolidação do masculino na cultura grega.


O retorno de Odisseu e a passagem pelo mundo mítico.

"Eu considero A Odisseia como um livro de iniciações, e a primeira iniciação é a de Odisseu em um relacionamento apropriado com o poder feminino, que foi rebaixado pelo Julgamento de Paris quando o princípio masculino se impôs de uma maneira excessiva. Agora o poder feminino deve ser reconhecido para que seja possível um relacionamento apropriado - o que eu chamo um relacionamento andrógino - no qual o masculino e o feminino se reconheçam como iguais. Eles são iguais, mas não idênticos, porque quando você perde a tensão das polaridades você perde a tensão da vida." pg 160

Quando Odisseu parte com sua tripulação de volta para Ítaca, seus marinheiros param em uma ilha, matando seus moradores e violentando suas mulheres. Ao que os deuses dizem "esta não é a maneira de um homem retornar para sua mulher", desta maneira se inicia o relato da Odisseia. Após este incidente, Odisseu é apresentado a três ninfas, Circe, Calipso, Nausicaa e com cada uma delas o herói aprende uma nova maneira de relacionamento, não mais unilateral, mas pelo reconhecimento dos termos do poder do feminino. Este percurso de aprendizado não é guiado por Ares, Zeus ou Apolo, mas por Hermes, o deus do renascimento místico.

Para Campbell o percurso de retorno de Odisseu é uma metáfora do restabelecimento do relacionamento entre um princípio solar-masculino e o lunar-feminino, pois o tempo que Odisseu leva para alcançar sua esposa Penélope é o mesmo que o Sol demora para encontrar a Lua em um mesmo signo no equinócio da primavera - vinte anos. O esforço da Odisseia é o de coordenar uma consciência sem sombras, atemporal, solar e uma consciência que habita o tempo e os ciclos de uma perspectiva lunar.

O primeiro passo deste percurso é a saída do reino solar e a entrada no reino do mítico, do inconsciente. Neste momento Odisseu encontra o Ciclope, o guardião da entrada que é, não por acaso, filho de Netuno, o deus relacionado com o inconsciente. Quando o Polifemus encontra Odisseu, o ciclope pergunta pelo nome do viajante, ao que ele responde: eu sou Ninguém. Esta é a primeira renúncia, o herói abre mão de sua identidade e se oculta sob os carneiros, figuras associadas ao Sol, para passar pelo monstro e adentrar o reino mítico.

Após este primeiro desafio, Odisseu passa por maus bocados e vê sua tripulação se reduzir devorada por monstros e pela fúria dos deuses. O primeiro encontro no mundo mítico se dá com a feiticeira Circe e é quando o herói recebe a ajuda de Hermes para não ser transformado em porco como o resto de sua tripulação. Aqui nós temos a oposição do poder mágico e do físico e revelação de que o poder masculino pode ser facilmente corrompido em animalidade quando este ignora a influência do inconsciente. A ninfa Circe é o paralelo de Afrodite, a sedução, e o herói transpõe esse obstaculo por ajuda divina, não por sua própria perícia. Cair em tentação, vítima da sedução é uma sina do masculino não integrado com o feminino.

Depois de Circe o herói encontra a ilha de Calipso e esta representa a deusa Hera, esposa de Zeus, o que indica que o aspecto a ser integrado aqui é o do casamento. Odisseu passa sete anos com Calipso em um reino em que o tempo não existe, onde não existe privação ou sofrimento. O engraçado é que aqui Odisseu se retira para as praias solitário e começa a chorar de saudades por sua terra e por Penélope e é neste momento que Hermes envia a Calipso a mensagem para liberar Odisseu para retornar a sua terra natal. O casamento na dinâmica masculina é esta ilha idílica, um refúgio, mas o herói percebe em lágrimas que seu verdadeiro amor não está lá.

Quando parte da ilha de Calipso, Odisseu tem seu barco destruído por Netuno e flutua a deriva por vários dias. Solitário e nu, o herói é destituído de tudo e levado pelas ondas à ilha dos Feácios, onde encontra Nausicaa a virgem que representa a deusa Atenas. Encontrado no meio das folhagens enquanto repousava, Odisseu é levado por Nausicaa a seu pai Alcinoo, que pergunta ao herói por sua historia. Aqui Odisseu revela sua identidade, conta sua histórias e aventuras, dando o sinal de que seu percurso pelo mundo mítico está chegando ao fim. Quando Nausicaa ouve o relato de Odisseu, ela percebe que o homem pelo qual se enamorara não poderá ser seu marido, pois ele pertence a um outro reino.

Enquanto isso Penélope estava a tricotar e destruir seu manto, como a lua que se desfaz todos os meses, enganando os pretendentes que a esperavam. Odisseu é colocado em um barco veloz e enviado para Ítaca, caindo em um sono profundo durante a viagem. Odisseu retorna do mundo mítico e desperta nas praias de Ítaca onde é transformado por Atena em um velho, para que se torne irreconhecível aos seus inimigos, os pretendentes que cercavam Penélope. Quando Odisseu se aproxima de sua casa uma série de encontros acontecem, seu cachorro, já velho, abana o rabo e se regozija à visão do dono, mas não tem mais forças para cumprimentá-lo. O velho cão Argos é a imagem deste instintivo sábio, tocando a verdade de imediato, não sendo enganado pela aparência deformada de Odisseu.

A sua governanta é a segunda pessoa a reconhecer o herói, por uma cicatriz em sua perna. Esta foi produzida por um porco selvagem em uma caça da qual Odisseu participou ainda criança. Aqui a figura do porco aparece mais uma vez, fazendo referência ao ctônico feminino, pois o porco era um animal sagrado no culto das divindades femininas da antiguidade. Circe transformava os homens em porcos, Odisseu foi recebido em Ítaca por um porqueiro, a sua cicatriz, são sinais que indicam o relacionamento do herói com os poderes do feminino.

Como um teste final, doze machados são dispostos para os pretendentes que cercavam Penélope e a tarefa era envergar o arco de Odisseu e disparar uma flecha que passasse pelas argolas de seus cabos. Sem sucesso, os pretendentes debocham do velho que estava sentado observando à entrada do salão, neste momento o velho se levanta e cumpre o teste, revelando sua verdadeira identidade. Telêmaco, filho de Odisseu, fecha as portas e todos os pretendentes são mortos. Campbell indica o retorno de Odisseu e a destruição dos pretendentes como uma figura do nascer do Sol e o desaparecimento das estrelas, e a passagem pelos doze arcos como uma passagem pelos doze signos do zodíaco.


Conclusão

Os dois épicos são símbolos de uma transformação que ocorreu pela interferência de religiões de tribos guerreiras caçadoras que invadiram o território grego aproximadamente no mesmo período em que a Odisseia e a Ilíada foram escritas, retratam o relacionamento de divindades masculinas e femininas. O resultado destes intercâmbios são o que nós recebemos como o panteão mítico da Grécia antiga, diferente do relacionamento entre o deus dos Hebreus e as deusas dos povos da mesopotâmia, sendo o relato de Josué e dos Juízes um paralelo contemporâneo das obras homéricas e uma espécie de negativo da integração entre os princípios masculino e feminino. Para o deus Hebreu as deusas são abominação e os povos que a seguem devem ser passados a fio de espada, e o porco que era um animal sagrado se torna um animal imundo, e toda a mitologia das deusas agrárias desaparece, a deusa foi silenciada.

A Odisseia representa a jornada solar pela integração com sua esposa lunar marcada pela destruição e renascimento. A cada encontro, Odisseu é destituído e frustrado em algum aspecto, sendo assim restaurado o relacionamento da consciência solar com o tempo e com os ciclos. Todas essas idas e vindas manifestam um ritmo que respeita as peculiaridades do mundo feminino, que hoje infelizmente se encontra exilado nas sombras mais obscuras de nosso inconsciente.

A complexidade da Odisseia é algo que me espanta e me mostra como é difícil a integração do feminino, pois o que está em jogo não é uma mera adequação do sistema, não se trata de direitos ou de uma dignidade sócio-cultural, mas de uma mudança que implica o encontro com o ctônico, o abismo e a destruição. Estas figuras habitavam um imaginário de historias e imagens que orbitavam as divindades femininas, mas infelizmente o fio da narrativa se rompeu a muitas gerações. A pergunta que eu lanço é a seguinte: Quando a Deusa pisará novamente a realidade de nossas vidas?















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