O feminino e a crise ecolôgica

La Loba 

Continuando o post anterior, queria continuar comentando o que Joseph Campbell expõe em seu livro “As Deusas” e usar estas imagens para comentar a atual crise ecológica que estamos passando. Faço isso porque quem está acompanhando os debates já percebeu que o ponto em que nos encontramos é desesperador, um beco sem saída, um lugar do qual não existe recuperação possível em face do terrível impacto da ação humana na natureza.

A emergência da cultura de consumo e da marginalização da natureza como mera fonte de recursos para sustentação de nosso estilo de vida não é nada mais que a concretização de um plano de vida onde o elemento feminino é exilado, o nosso mundo é o resultado de um “projeto masculino” como diz Vandana Shiva em uma entrevista. Vou deixar o link no final do post e transcrever aqui apenas um trecho.

“o mundo passou a ser moldado de acordo com um projeto masculino. De forma consciente o conhecimento foi redefinido como masculino por pessoas como Francis Bacon. A economia foi redefinida em termos de bens transacionáveis e a partir do qual pode-se obter lucro. Se você cozinha para seus filhos ou busca água para cuidar de um idoso, isso não é trabalho, não é produtivo e não contribui para a economia... Toda a enorme criatividade, produção e regeneração da natureza foi apagada... As mulheres podem contribuir para a resolução das múltiplas crises que enfrentamos, fruto deste pensamento mecanicista e deste sistema econômico altamente alienado, artificial, que começou a tornar o capital real e a realidade ilusória.”

Vejo como correlatos este processo de aniquilação da natureza e o apagamento do feminino de nossas vidas, por isso estou resgatando estas historias e contos para que vocês possam perceber como era importante o papel do feminino na regulação e restauração da vida em todos os níveis, incluindo tanto a natureza como realidade material e biológica quanto nossa fauna afetiva e nossos leitos psíquicos e espirituais.

O papel do feminino nas antigas culturas caçadoras

“Este é um ponto básico em mitologia: o individuo que realiza um ato não o faz por seu próprio impulso, mas em acordo com a ordem do universo”. 

Está citação foi retirada de um trecho em que Campbell comenta um episodio de um etnólogo em expedição no Congo. Em um determinado momento da viagem faltou carne e, sabendo que os pigmeus são excelentes caçadores, Leo Frobenius pediu-lhes que caçassem uma gazela. O etnólogo queria a carne para o mesmo dia, coisa que chocou os pigmeus porque para eles abater um animal exige um ritual, uma espécie de diálogo com a natureza que lhes permitiria ser bem sucedidos em sua caçada. Acompanhando-os, ele descreveu o ritual com as seguintes palavras:

“Primeiro, eles se dirigiram para um morro e limparam seu topo, então desenharam nesta área a figura da gazela que eles iriam matar. Na manhã seguinte, precisamente ao nascer do sol, quando os raios do sol alcançaram o desenho da gazela, um dos pequenos caçadores lançou uma flecha – junto com os raios solares – em direção da imagem, e a mulher levantou suas mãos e emitiu uma espécie de lamentação. Então eles foram e mataram uma gazela acertando o mesmo lugar em que a flecha feriu a imagem. No dia seguinte eles trouxeram um pouco do sangue e dos pelos do animal e colocaram sobre a imagem, quando o sol novamente brilhou sobre ela, eles, então, a apagaram.”

Qual é o significado deste ritual? Segundo Campbell, nas antigas culturas caçadoras o animal se oferece para ser morto, como se o ritual selasse um acordo com a natureza no qual o homem atua apenas indiretamente, quem na verdade mata a gazela é o sol, e o sangue e os pelos representam o retorno do animal para sua origem Terra. Existe uma ordem que regra toda a natureza e o homem nela se insere pelo ritual. A função da mulher no ritual não está clara, mas em um outro conto narrado por Campbell, oriunda da tradição caçadora das tribos Blackfoot de Montana, a função do feminino é desenhada com maiores detalhes.

“Existe um período do ano em que essa tribo precisa estocar carne para o inverno. E eles costumavam fazer isso conduzindo um grupo de búfalos para um precipício para que eles caíssem, quebrassem suas colunas e pudessem ser facilmente mortos.
Bom, no caso deste conto os búfalos não seguiram para o precipício, então tudo indicava que a tribo iria ter um inverno muito difícil.
Em certa manhã, uma jovem se levantou para pegar água para sua família e quando ela saiu, encontrou sobre o precipício um grupo de búfalos. Naquele momento de espontânea satisfação, ela disse, “Oh, se vocês pudessem apenas cair nesse precipício, eu poderia casar com um de vocês.” Uma grande oferta. Ela se surpreendeu – porque eles se jogaram no precipício! Todo o grupo de búfalos caiu, quebrando suas colunas.
Mas então um grande búfalo apareceu e disse “Ok, gracinha.”
Ela disse, “Oh, não!”
Ele disse, “Oh, sim. Olhe o que nós temos aqui: você fez uma promessa e nós fizemos a nossa parte e agora você está refugando? Venha cá!” E então ele a levou consigo.
Bom, a família da garota acordou e todo mundo ficou surpreso por achar os búfalos prontos para serem mortos, e eles adoraram isso. Depois que eles terminaram de matar e separar as carnes eles perceberam que a jovem não estava lá.
Seguindo as pegadas, o pai percebeu que ela havia saído com um búfalo. Então ele se preparou para a jornada, pegou arco e flechas, e seguiu a trilha de pegadas. Finalmente, depois de andar um pouco, ele chega a um lugar que os búfalos usavam para se refrescar e começa a pensar.
Então um pássaro apareceu. O pássaro em questão era um magpie, um pássaro muito esperto, e os magpies assim como alguns animais em particular (como raposas, magpies, corvos) são animais shamânicos. Então quando o magpie desceu ao solo, o homem perguntou ao pássaro, “belo pássaro, você viu minha filha em algum lugar por aqui? Ela saiu com um búfalo.”
O magpie disse, “bom, eu vi uma jovem garota logo ali, com um búfalo agora mesmo.”
E o pai disse, “então, você pode dizer a ela que eu estou aqui?”
Assim, o magpie voou para onde ela estava e todos os búfalos estavam dormindo ao seu redor, e ao lado dela estava o maior de todos. O magpie chegou rodeando, se aproximou cauteloso e disse, “seu pai esta no lago dos búfalos e quer lhe falar.”
“Diga a ele para esperar que eu estou indo”
Então, neste momento o grande búfalo despertou e disse, “traga água para mim”. Ela retirou um dos chifres do búfalo e saiu para buscar água onde seu pai a aguardava.
O pai falou, “venha comigo para casa.”
Ela disse, “não, não, é muito perigoso. Espere até que ele durma novamente e então eu estarei pronta para ir para casa. Eles estão acordando de seu cochilo.”
Ela voltou com a água, mas o búfalo farejou e disse, “Fe, fi, fo, fum, eu sinto cheiro de um Índio!”
Ela disse, “oh, não!”
E o grande búfalo disse, “oh sim!” Ele se levantou mugindo e fazendo um estardalhaço, acordando os outros búfalos e então, eles foram para o lago e mataram o pobre Pai. Eles o pisaram até que não havia nem um rastro de seu corpo. 
A garota chorou, “oh, Papai!”
E o grande búfalo disse, “sim, você está chorando porque perdeu o pai. Mas e nós? Olhe para nós. Nossos pais, mães, filhos, nossas esposas, todos se foram.”
Mas tudo que a garota conseguia dizer era, “mas Papai!”
Então o búfalo disse, “tudo bem. Se você conseguir trazer seu pai de volta à vida, eu deixarei você voltar para sua tribo.”
Veja o que ela fez. Ela disse para o magpie, “de uma volta e veja se acha um pedaço de meu Papai em algum lugar.”
O magpie procurou e retornou com um pequeno pedaço da coluna do pai.
Ela colocou o pedaço no chão e cobriu com seu manto, começando a cantar uma canção mágica. Então, um corpo de homem aparece sob o manto. Quando ela retira o manto, ali está seu Papai, inteiro. Ele, contudo, não está vivo. Então, ela o cobre novamente e canta um pouco mais, fazendo com que ele se levante.
Os búfalos ficam chocados. O grande búfalo diz, “Se você consegue fazer isso com seu pai, por que você também não faz para nós, búfalos? Nós revelaremos a você nossa dança, e você dançará e ressuscitará os búfalos que você matou e esse será nosso pacto com você, um acordo.”
Esse é o acordo fundamental dos antigos caçadores entre animais e homens, consagrado através de rituais de adoração, e isso surgiu do ato daquela jovem mulher.

Ela é a ligação entre dois mundos.

Existem outros contos e mitologias que colocam a mulher como responsável pela regeneração da vida, como o La Loba contado pela Clarissa Pinkola Estes em seu “Mulheres que Correm com Lobos”, onde uma misteriosa mulher caminha pelo deserto procurando ossos e juntando-os em sua caverna. Quando reunidos em uma ossada completa ela canta sobre o ser inerte e a cada fôlego os ossos ganham carne, nervos, sangue, sendo completamente reanimado pela voz feminina.

Estas lendas apontam para o feminino como o elemento que regenera a vida em todas as esferas, tanto material quanto espiritual. Por isso, penso que a solução que se delineia para nossa atual crise climática precisa passar pela reabilitação do feminino em nossa realidade e que, portanto, não existirá tecnologia potente o suficiente para barrar o avanço da morte, o que já estamos experimentando em nossa falta de valores espirituais, morais, afetivos e agora fisicamente como a falta de água. 

Assim, ainda que irreversível e sem saída, ou ainda que sobre os ossos de nossa Natureza, eu acredito que o coração feminino é perfeitamente capaz de faze-la renascer novamente.

Link da entrevista com a Vandana Shiva: 
https://www.youtube.com/watch?v=7G6c2QYf8e8&feature=share


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria