A miséria do ser.

Capa do álbum - Wish You Were Here
O que é isto, o Ser?

Isso que vivemos quando acordados, andando, trabalhando, conversando... seria isso Ser? Será que a caminho do trabalho nós estamos sendo? Sou eu, ali, verdadeiramente?

Observo a mim mesmo e as pessoas, nossos corpos e nossas expressões. É o ser... isso? Nossos corpos se movimentando, comendo e respirando? É o ser o encaminhar fortuito das fibras musculares e de nossos tecidos, uma demanda de açucares e frituras? Uma mastigação cega?

Quando estou diante de um espelho a me olhar... estaria eu ali?

Quem nos ensinou a acreditar ser o Ser algo dado? O que me garante que sou? Minha certidão de nascimento? Meu nome? Balbucio palavras, seria isso o Ser?

Tudo é intermediado pelos sentidos e pela linguagem. Todas as imagens estão conectadas à impressões, reverberações mnêmicas saltitam e se entrelaçam a cada noite e o real se desvia de minhas perguntas, parece que o Ser e o esquecimento andam de mãos dadas e a minha consciência apenas aponta para uma direção - o fim. Presença e Ser simplesmente não coincidem e tudo que consigo conceber como Ser não ultrapassa minha epiderme.

Ouvindo a música Wish You Were Here com meus alunos, eu começo por explicar o contexto da música e a história da perda do guitarrista Syd Barrett e de como a mera presença não é capaz de assegurar o Ser daquele que amamos, pois estamos sendo consumidos continuamente, ou pelos narcóticos ou pelo trabalho extenuante. Observando a capa do álbum percebemos dois homens apertando as mãos enquanto um está em chamas, os dois vestem terno e parecem representar um acordo. Pergunto-lhes: qual seria este acordo?

Eu entendo que este mundo(chame como quiser, capitalista-ocidental-judaicocristão) é uma espécie de motor humano, movido ao preço de nossa existência. Apertamos as mãos e aceitamos consumir nossa substância para manter este mundo funcionando. A cada dia aceitamos e queimamos, acreditando ser isso algo importante(para quem?). Ironicamente, a realização dos valores que nos oferecem acabam por carbonizar toda possibilidade de ser e de alcançar um relacionamento significativo. Após o sucesso de Dark Side of the Moon, Roger Waters percebeu que o colega Syd estava ausente, consumido.

Seria esse o resumo de toda nossa saga de sucesso-miséria? Cinzas?

Quantas coisas temos consumido, quantas paisagens e vidas são aniquiladas diariamente para manter uma concepção de ser? O que nos esforçamos diariamente por acreditar ser algo digno do mais alto valor - a vida - nada mais é que a superfície de vários planos que não possuí existência em si. Por isso nossa vida subsiste nos limites de um equívoco... enquanto empurramos centenas de seres para o nada, nos encontramos ilhados em um mar de morte.

A miséria, querido leitor, não é um problema econômico, pois ambos, ricos e pobres, lutam diariamente por sua perpetuação. A miséria é fruto de um aperto de mãos onde celebramos a presença como o Ser, isso é a nossa Miséria.

O que é o Ser? Faço-me esta pergunta desde que uma sombra nasceu em mim.

Desde que me deparei com o Bhagavad Gita entendi que existir é uma eterna batalha no qual somos lançados ao nascer. Como notar a suavidade da verdade quando o suor nos cai nos olhos e a morte nos cerca por todos os lados? Como soltar a espada quando ela já se apegou à mão..coagulada?
Esta dança de morte, luta com Deus, desajeitada e implacável, é a minha vida.

Heráclito diz:

"Por mais longe que vás, não encontrarás os limites da alma: tão profundo é o seu logos"

A odisseia do conhecimento é um grande esforço de ancorar o humano na transcendência. Por isso, ainda que variadas escolas e mestres tenham pipocado pela história, não existe um mestre possível quando nos propomos a conhecer a verdade.

Parmênides enunciou o famoso "o ser é e o não ser não é"? Isso é algo óbvio não? qual é a importância desta sentença? Esta sentença seria um dos primeiros gritos de independência da razão e desvela a lógica como algo apartado de toda experiência sensorial, uma verdade que se garante pelo próprio enunciado. Parmênides não aceitou o nada como parte do ser, ele quis escapar à finitude exilando a verdade em um plano idealizado. Porém, vida abarca o nada e o real, o inicio e o fim e a verdade não pode ser menor que a vida.

Acredito que a filosofia desperdiça milênios procurando encobrir a verdade num colossal esforço de elevar a covardia a um valor máximo. Isso é o dualismo, ou o bote salva vidas.

Heráclito preferia brincar com as crianças a auxiliar os gregos a legislar, pois toda a seriedade deste mundo não alcança a verdade de uma brincadeira infantil.

"Discípulo: Eu entendo que quando um leão se lança sobre seu oponente, sendo ele um servo ou um elefante, ele faz um uso pleno de seu poder. Eu suplico, diga-me o que é este poder.
Mestre: O espírito da sinceridade. (literalmente, o poder de não ocultar)

Sinceridade, ou seja, "não ocultar" ou "colocar toda a sua existência" é, de acordo com Rinzai, "o ser completamente em ação", no qual nada é mantido em reserva, nada é expresso indiretamente, nada é desperdiçado. Quando alguém vive desta maneira, ele é chamado de "leão de pelos dourados"."

Erich Fromm, D T Suzuki - Zen and Psychoanalysis.

Como pode a vida partilhar o Nada?

Aqui, recorro a esta reflexão feita por Heidegger a respeito de uma definição de jarra.

Na água doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo o conjunto das pedras e todo o adormecimento obscuro da terra, que recebe a chuva e orvalho do céu. Na água da fonte, perduram as núpcias do céu e terra. As núpcias perduram no vinho que a fruta da vinha concede e no qual a força alimentadora da terra e o sol do céu se confiam um ao outro. Na doação da água, na doação do vinho perduram, cada vez, céu e terra. A doação da vaza é, porém, o ser-jarra da jarra. Na vigência da jarra, perduram céu e terra. Ensaios - pg.151

Esta passagem é uma prova de como uma reflexão pode ser linda..rs

O ser, como presença, não pode se colocar sem o abraço do nada, assim como um vaso é um nada em forma de objeto que vaza para a continuação da vida. Quando separamos ser e nada, nos alienamos deste magnífico ciclo de doação e perpetuação da vida nas coisas que nos cercam, e nas que se tornaram ausentes.

A verdade é um desvelamento do Ser, alétheia. Não é pura revelação, mas está de braços dados com o oculto... é, como a vida, uma doação eterna - o tempo.

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