Entre o Amor e o Abuso

Cena do clipe Cherry Wine - Hozier

"A moral é que a mulher, tal como a natureza a criou e como o homem atualmente a educa, é sua inimiga, podendo tão-somente ser sua escrava ou sua déspota - jamais sua companheira. Isto, só quando ela tiver os mesmos direitos que ele; só quando por nascimento, pela formação e pelo trabalho, for igual a ele.
- Agora temos nós a escolha de ser o martelo ou a bigorna, e eu fui o burro, ao me fazer escravo de uma mulher. Entendes?" A Vênus de peles

Escolhi esse trecho da Vênus de Peles de Sach Masoch para mostrar que o abuso é um jogo aberto, onde o algoz pode assumir varias formas, independente de gênero, laço afetivo, classe social.. é um jogo sem demarcações claras. O mais difícil não é salvar a vítima, ou condenar o algoz, o desafio aqui é perceber como abuso se estende para além da violência bruta, daquelas páginas sangrentas do noticiário, lançando raízes profundas sobre a placidez de nossa intimidade.

Na história da Vênus de peles, Severin deseja e pede para que sua amante o submeta, ela nem queria, mas acaba assumindo o papel de algoz e assim se desenrola a trama de violência e desejo até o clímax, erigindo um dos finais mais surpreendentes que eu já tive a oportunidade de ler. Acho que eu senti essa surpresa por ser um final vergonhoso, tipo como me sinto quando assisto filmes dos brothers Cohen. Acho que quando pensamos o abuso é impossível não tocar o pântano de nossas vergonhas, de certos afetos inconfessáveis e, ao fim, percebo como é difícil admitir que, apesar dos vários motivos para se recusar o abuso, as vezes não sabemos amar de outra forma - senão pelo par vítima-algoz. Entre amar, pela distorção do abuso, e não possuir vínculos, optamos por abraçar nosso amado, ainda que com hematomas.

A combinação de insuficiência e abuso nos torna presa de relacionamentos distorcidos, afinal, como ter a intrépida coragem de dizer... não? Como suportar a possibilidade da solidão? Essa é uma posição muito difícil e normalmente passamos a vida falando a língua do abuso, sem perceber que outras relações são possíveis, que o respeito a si e ao outro estão sempre no horizonte.

O abuso começa em nossos lares, quando tratamos nossas crianças como seres que não são capazes de se relacionarem com igualdade e respeito. Faça isso! Por que? Porque eu quero...
Aqui colocamos aquele ser frágil em uma posição inferior, desigual - se submeta ou eu te lanço no vazio! Ameaçamos para construir a obediência e isso começa a colorir tudo, posteriormente, toda a sociedade passa a se posicionar pela ameaça... trabalho porque senão não serei reconhecido como uma pessoa digna, suporto este relacionamento horrível por amor aos filhos..    

O discurso normal tende a condenar o abuso como absurdo, colocando o abusado na posição de vítima, assim não nos permitimos perceber como somos todos cúmplices de um grande jogo, que todos estamos em campo - algoz e abusado - e temos que nos permitir pensar o que nos faz participar disso, alimentando os pequenos abusos do dia a dia.

"Ele cometeu aquele erro porque ele precisava de ajuda. Quem vai ajudá-lo? Ninguém vai dizer: ele precisa de ajuda! Todos vão dizer que ele é um monstro, sem olhar o contexto. Eu estava mais preocupada com ele" Rihanna em sua entrevista para Oprah, comentando o caso em que foi espancada por seu namorado, o cantor Chris Brown.

A posição de abusado é uma posição de força, nos sentimos poderosos na medida em que suportamos cargas mais pesadas. Rihanna teve a seu corpo ferido, fotos divulgadas de seu rosto ferido circularam pela mídia, e ainda assim ela se preocupou com seu agressor. Não haveria para além da pura nobreza um componente de onipotência? De doação ilimitada?

O jogo do abuso é uma combinação de intensidade e prazer, avançando para o seu oposto(dor) e um falso dilema - abuso/solidão.

"Outra dificuldade vem de que frequentemente se junta a relação erótica, além de seus próprios componentes sádicos, um quê de inclinação direta à agressão. O objeto amoroso nem sempre vai encarar essas complicações com o entendimento e a tolerância da camponesa que reclamou de que seu marido não mais a amava, porque há uma semana não a espancava." Mal-estar na civilização

Com o tempo vamos nos percebendo exaustos, consumidos e esvaziados... preocupados em decifrar como fazer nosso amor feliz, o que fazer? Onde mais ceder? Aqui, a onipotência toca a carne - adoecemos.

O único remédio possível é o santo "não", e depois, com muito penar, ir descobrindo que não morremos, que as pessoas que amamos continuam aqui, ao nosso lado.

Quando falamos não em um relacionamento abusivo, notamos que aquele que estava ao nosso lado se transforma, enfurecido, tenta nos colocar contra a parede, nos ameaça - continue comigo senão... Como você não vai mais jogar?? Ai você se pergunta, que amor é esse? Onde está a consideração por você, onde está o respeito? Por que aquele que dizia te amar não notou você murchando, adoecendo? Por que ele não aceita e reconhece seu espaço, seu "não". A reação ao não é o divisor de águas entre um relacionamento abusivo e um em que existe respeito.

Essas distâncias se alcançam com o tempo, percebemos que não precisamos nos expor tanto, nos submeter tanto... nos odiar tanto. Podemos ser iguais e nos amar, mas precisamos de tempo e como não temos mais essa paciência, lançamos mão do abuso..tanto nos oferendo, quanto nos impondo.

Levante, olhe ao redor... perceba que ninguém te respeitará, assim como Severin percebeu.
Seria este o dilema? Escolher entre ser o martelo ou a bigorna? Vamos ser os martelos?
Ou poderíamos nos amar e nos respeitar? Entre o dilema e a ambiguidade, fico com a última.    

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria