O Crusoe de Michel Tournier

Robinson Crusoe e Sexta-Feira - John Charles Dollman 
"A linguagem depende fundamentalmente daquele universo povoado onde os outros são faróis que criam em seu redor um ilhéu luminoso, em cujo interior tudo é, se não conhecido, pelo menos cognoscível. Os faróis desapareceram do meu campo. Alimentada pela fantasia, a sua luz ainda por longo tempo veio até mim. Agora, acabou: rodeiam-me as trevas."
pg.48

Michel Tournier em sua obra "Sexta-feira ou os limbos do pacífico" reconta Robinson Crusoe em uma jornada estranha, desvelando uma historia diferente daquela que todos conhecemos. Nesta obra, Crusoe não consegue civilizar a ilha, antes, é reconduzido à brutalidade elemental ao cabo de um longo processo corrosivo, um percurso que esgarça sua humanidade e lhe permite ver uma vida outra.

Percebemos uma vida pulsante que se revela pelas fissuras do tecido do real ao mesmo tempo em que apreendemos como o real era um plano sustentado pelo pelo olhar Outro. Por isso a solidão não é apenas algo deprimente, mas atenta contra nossa capacidade de estruturar e perceber o real. As coisas se tornam insubmissas, estranhas e inquietantes. No momento em que nos encontramos sozinhos, algo começa a vacilar, indicando que a percepção do real era parte de um grande testemunho, um território sustentado pela presença do outro. No instante em que meus olhos não encontram um outro olhar, todas as coisas vão perdendo o contorno e vamos nos esquecendo daquele testemunho vital que nos tranquiliza e coloca as coisas em seu devido lugar. Com Crusoe, percebemos o quanto isso nos constitui, não é uma mera necessidade afetiva - é uma coluna existencial.

Com a chegada de Sexta-feira, as coisas pareciam tomar um rumo diferente, mas o novo companheiro de ilha começa a lhe trazer um incômodo profundo no qual podemos entrever que seu processo de desumanização irá continuar, agora pelas mãos do selvagem.

"Sexta-feira opunha-se, por natureza, a esta ordem terrestre que Robinson, como camponês e como administrador, tinha instaurado na ilha, como camponês e como administrador, tinha instaurado na ilha, e a qual devia a sobrevivência. Afigura-se que o araucano pertencia a um outro reino, em oposição ao reino telúrico do patrão, sobre o qual tinha efeitos devastadores, por pequena que fosse a tentativa de nele o conservar prisioneiro." pg167

Após muitas tentativas de educar o companheiro de ilha, Robinson percebe que seus esforços não produzem o resultado esperado, percebe também uma espécie de complacência por parte de Sexta-feira. É perturbador para Robinson que o "selvagem primitivo" não admire e não se submeta aos seus ideais, e que ainda parece tolerar suas idiossincrasias por magnanimidade, não por ser inferior. Isso aproxima Sexta-feira da ilha Speranza, já que ambos parecem acolher Robinson, apesar das contínuas tentativas de domesticação impostas sobre ambos.

"Cansado de o ver desempenhar-se das tarefas de que o incumbo, sem jamais se inquietar, aparentemente, com a sua razão de ser, resolvi tirar o assunto a limpo. Impus-lhe o trabalho absurdo, considerado em todas as penitenciárias do mundo como o mais humilhante dos vexames: cavar um buraco, fazer um segundo para pôr o que se tirou do primeiro, um terceiro para pôr o que se tirou do segundo, e assim sucessivamente.
... Ora, não basta dizer que Sexta-feira não se irritou perante este imbecil labor. Raramente o vi trabalhando com tanto frenesi. Sexta-feira completamente embrutecido ou Robinson considerado por ele como demente.." pg 137

Robinson começa a se questionar e a pensar se que o que fazia, das colheitas à organização da ilha, não era algo destituído de sentido. Via Sexta-feira plantar árvores de cabeça para baixo, vestir árvores, e se espantava, mas era mais desconcertante pensar que sua fúria organizadora era igualmente esvaziada de sentido, incapaz de se sustentar por si mesma. Na organização das coisas transpira um grito de socorro, um clamor pelo familiar e por algo que o ajude a permanecer o mesmo. A ilha parece assimilar tudo e encaminhar a vida a despeito de todos os esforços de Crusoe para controla-la. Todo o esforço empreendido no sentido de domesticar Speranza é engolido e o naufrago humano vai se tornando, cada vez mais, parte de um organismo maior.

"Robinson debate-se interiormente com esta dúvida. Pela primeira vez, entrevê nitidamente, no mestiço grosseiro e estúpido que o irrita, a possível existência de um outro Sexta-feira - tal como outrora pressentira, antes de descobrir a gruta e o combo, uma outra ilha, escondida na ilha administrada". pg.160

Quando observamos os povos indígenas sentimos algo que nos perturba porque a despeito de todos os sofrimento impostos a estes povos, eles permanecem, perseveram em sua cultura e tradição. É claro que existem índios que se aculturam, enriquecendo e tirando vantagens de privilégios constitucionais, mas o que me inspira aqui é pensar que existe algo pulsante em suas crenças, algo que é muito mais vivo que a nossa cultura dita "desenvolvida" e não conseguimos admitir que eles podem ser mais felizes do que nós, ainda que possam morrer de gripe e não possuam geladeiras, ele conseguem fazer algo que nós não conseguimos - brincam de viver -  revelando a aridez de nossos costumes.

"A flecha subiu a uma altura de, pelo menos, cento e cinquenta pés. Aí, pareceu ter uns instantes de hesitação, mas, em vez de picar direito à praia, inclinou-se na horizontal e esgueirou-se para a floresta com uma energia nova. Assim que desapareceu por detrás de cortina formada pelas primeiras árvores, Sexta-feira voltou-se radiante para Robinson.
 - Vai cair nos ramos, não a encontrarás - disse-lhe Robinson.
 - Não a encontrarei - respondeu Sexta-feira - porque este nunca mais cairá. pg 173

A penumbra do lúdico é essencial para que exista um diálogo com as coisas, para que a vontade floresça. Esse segredo selvagem só se abre para Crusoe após um longo percurso de desmanche ao cabo do qual ele emerge maior, integrado com a ilha. Crusoe nunca mais estará sozinho.  

Após perder sua pena e tinta, Crusoe é presenteado por Sexta-feira com um novo material para escrever suas memórias

- Agora - disse simplesmente -, o albatroz é melhor que o abutre e o azul melhor que o vermelho. pg167

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