Três dias e três noites no metrô

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Vejo uma garota girando uma mecha de cabelo
Olhando, absorta, o horizonte aberto pela janela do metrô
Usando o dedo indicador como uma agulha de tricô
Ela perpassa o feixe de cabelos
Girando e puxando com uma frequência
Cujo número encerra todo o mistério da vida

Ao fim, posiciona um nó de cabelo
Bem na ponta de sua mecha
Satisfeita, agora ela aperta esta pequena bola de cabelo
Entre o indicador e o polegar
Sentido a tensão dos fios entrelaçados
Em três apertadas
Um.. Dois.. Três.

Desfaz o nó e volta a dançar com sua mão esquerda
Sem perder o horizonte de vista.

As vezes me sinto como essa mecha de cabelo nas mãos de Deus. Talvez, meu coração bata em uma frequência determinada entre seu indicador e o polegar.

Quando me posiciono na passarela do metrô, sinto ele se aproximar pelos ruídos dos trilhos. Olho os prédios ao redor e percebo várias pessoas se aproximando. O metrô freia e vai parando lentamente até a porta se abrir em minha frente.

Aqui me lembro de Jonas lá no meio de uma tempestade a uns milhares de anos atras. Seus colegas de embarcação o jogam ao mar para aplacar a ira de Deus, funciona. Ele afunda cada vez mais, em um turbilhão de águas escuras. Então ele sente um vulto mais escuro que o mar se abrir sob seus pés...

Dentro do metrô, percebo que as pessoas rapidamente se assentam e se apertam. Bloqueiam o fechamento das portas, ao que o condutor apela: não impeça o fechamento das portas, isso causa atraso para todos os passageiros. Eles bloqueiam a porta novamente, e o condutor fala... se não for sair na próxima estação, não fique na região das portas. Ninguém faz a menor ideia do que faz naquele vagão deslizando pelas entranhas da cidade, alguns dormem de boca aberta, outros sustentam um olhar entorpecido. SE eu perguntasse.. por que você está aqui? Ouviria prontamente: vou para o curso, para casa, o diabo... se eu perguntasse mais três por ques... Afundaríamos.

Quando me dirijo para a porta, uma garota lê um texto cujo título começa com um "Sistema digestivo..."

"Esse motivo popular enfatiza a lição de que a passagem do limiar constitui uma forma de
auto-aniquilação. Sua semelhança com a aventura das Simplégades é óbvia. Mas, neste caso, em lugar de passar para fora, para além dos limites do mundo visível, o herói vai para dentro, para nascer de novo. O desaparecimento corresponde à entrada do fiel no templo — onde ele será revivificado pela lembrança de quem e do que é, isto é, pó e cinzas, exceto se for imortal.


O interior do templo, ou ventre da baleia, e a terra celeste, que se encontra além, acima e abaixo dos limites do mundo, são uma só e mesma coisa. Eis por que as proximidades e
matadores de demônios com as espadas desembainhadas, anões rancorosos e touros alados. entradas dos templos são flanqueadas e defendidas por colossais gárgulas: dragões, leões, matadores de demônios com as espadas desembainhadas, anões rancorosos e touros alados.

 
Eles são guardiães do limiar, a quem cabe afastar todos os que forem incapazes de encontrar os silêncios mais elevados do interior do templo. São encarnações preliminares do aspecto perigoso da presença e correspondem aos ogros mitológicos que marcam os limites do mundo convencional, ou às fileiras de dentes da baleia. Ilustram o fato de o devoto, no momento de entrar num templo, passar por uma metamorfose. Sua natureza secular permanece lá fora; ele a deixa de lado, como a cobra deixa a pele. Uma vez no interior do templo, pode-se dizer que ele morreu para a temporalidade e retornou ao Útero do Mundo, Centro do Mundo, Paraíso Terrestre. O simples fato de todos poderem passar fisicamente pelos guardiães do templo não invalida sua importância; pois se o intruso for incapaz de compreender o santuário, então permaneceu efetivamente do lado de fora. Todos os que são incapazes de compreender um deus vêem-no como um demônio e, assim, se protegem de sua aproximação.

Portanto, alegoricamente, a entrada num templo e o mergulho do herói pelas mandíbulas da baleia são aventuras idênticas; as duas denotam, em linguagem figurada, o ato de concentração e de renovação da vida.

"Nenhuma criatura", escreve Ananda Coomaraswamy, "pode atingir um grau mais alto da
natureza sem cessar de existir
."  Joseph Campbell - O herói de mil faces

Ultimamente, tenho sentido uma angústia de metrô. Perco o fôlego, sinto uma urgência de fugir e sair daquele lugar, uma angústia que só passa depois de umas boas respiradas ao ar livre. Por quê? Não sei, mas talvez tenha a ver com essa digestão vagarosa pelo qual venho passando. Estou sendo digerido, lentamente deixo de existir para me tornar outra coisa. O que? Também não sei. 

Onde esta baleia vai me vomitar? Será que quando saio do metrô, sou a mesma pessoa que entrou?

Preciso sair... o metrô me espera.



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