Alice no país dos normais

                                                                                                                                                         
Alice olha o buraco do coelho - não seria isso uma metáfora do momento em que olhamos para nós mesmos?

De vez em quando alguém me pergunta... por que você colocou o nome de seu blog de wasabi? Aí eu explico a respeito da tal estética japonesa e digo que não se trata do tempero de sushi, mas de um esforço, que me parece cada vez mais intenso, de criar espaços de questionamento e reconhecimento. Porque é cada vez mais difícil relativizar ideais, não planificar a vida, não abraçar respostas fáceis, não impôr um padrão bizarro sobre todas as pessoas...em palavras mais wabi sabi: perceber no torto do galho da árvore sua beleza e sua singularidade. Difícil né? Não seria melhor serrar esse galho e deixá-lo retinho igual ao outros aqui da minha fábrica de tábuas? Não, não seria melhor - insisto.

Talvez essa explicação do por que do wabi sabi pode parecer estranha, vou tal apelar para um exemplo que me mobilizou nesses últimos dias. 

Final de semana passado vi o documentário do Fantástico sobre os transexuais e comecei a me inteirar do universo cis e trans e que existe uma diferença entre nossas escolhas sexuais e nossas escolhas de gênero. Confesso que sou meio devagar para me inteirar das novas siglas disponíveis no mercado. Depois a apresentadora entra em um cenário computadorizado e acompanhamos Alice (do Lewis Carrol) entrar em sua jornada pelo desconhecido. Assim, diz a apresentadora, acontece também com as pessoas trans, eles precisam enfrentar uma jornada pelo desconhecido para encontrarem sua própria identidade, para descobrirem quem são. Em seguida um especialista explica as diferenças entre pessoas trans e pessoas cis e que isso se deve a um descompasso entre o desenvolvimento cerebral e o genital, ocasionando esse "desencontro" que caracteriza o trans.

A questão dos transgêneros é muito delicada, não é meu propósito aqui discutir isso especificamente. Gostaria de indicar apenas algumas escolhas que a produção tomou, a primeira foi colocar a questão dos transgêneros sob o âmbito da ciência médica e do desenvolvimento da gestação. A segunda escolha foi indicar que a mudança de gênero oferecida pelo IPq é uma saída para "solucionar" esse desencontro cérebro x genitália. Eu entendi que essas escolhas sejam uma forma didática de colocar a questão para a população ignorante, na melhor das intenções. O que me deixou incomodado neste ligue os pontos - você é trans, logo mude de sexo para ser mais feliz - é que ele me parece trair a jornada da Alice do país das maravilhas e joga a questão do transgênero para o âmbito da pura intervenção médica, já que a origem da questão é colocada no desenvolvimento do feto. 

Temos que admitir que isso alivia os pais, pois a escolha de gênero sai do âmbito da educação, logo não é "culpa" deles que o filho seja trans, e permite que um procedimento médico, como o tratamento oferecido pelo IPq (o bloqueio de puberdade..etc) "solucione" este desencontro, reduzindo o sofrimento das crianças e adolescentes que passam por essa situação. Existem inúmeros relatos de pessoas que odeiam seus corpos, que não suportam urinar e ter que pegar num pênis... muitas tentativas de suicídio e pressão da família para colocar a criança no lugar dela, para retirá-la dessa posição desviante. Seria natural para um pai que acredita que a educação "forma" a sexualidade de seu filho que ele forçasse o garoto a jogar bola e brincar de comandos e ação, repreendendo todos os sinais de feminilidade. Com isso, colocar a questão no plano biológico pode aliviar essa pressão também.

Existem mais variáveis em jogo, mas neste momento gostaria de usar esse exemplo para indicar como o programa de TV planificou algo que é complexo sem colocar em jogo as escolhas do percurso. Reconheço que esse esforço procura dirimir o sofrimento trans e ajudar os pais, mas será que precisamos fechar a questão para realizar isso? Me pergunto algumas coisas...será que é essa a melhor resposta? Será que a população trans foi realmente ouvida? Precisamos saber a origem dos transgêneros? Precisamos consertar esse desencontro da natureza, que subentende-se, é o trans? Onde está o desencontro? Ele realmente existe? Esse documentário não foi feito para tranquilizar uma população que não sabe (e não quer saber) o que é cis-trans? A mudança de sexo é uma boa alternativa? Visa a felicidade da população trans ou a sua adequação? Essas medidas farão as pessoas refletirem sobre a perseguição contra os transgêneros? Podemos perguntar essas coisas sem parecer um Deputado da bancada da Bíblia?

É preciso manter a questão aberta e deixar Alice entrar em sua jornada... precisamos também entender que Alice somos todos nós. 

Quando Simone de Beauvoir disse o famoso "não se nasce mulher, torna-se uma" o que ela quis dizer? Pergunte-se... deixe essa pergunta ressoar. Queria ela endossar a violência contra os transgêneros? Queria ela dizer que o pai e a mãe torna a criança uma mulher, ou um homem, se eles acharem melhor? Em seu trabalho ela busca abrir a questão de gênero, desvinculando-a do plano biológico... agora, por que ela fez isso? Seria talvez porque lá pelos idos de 1949 ela já tenha percebido esse hábito teimoso de naturalizar questões culturais, usando verdades pretensamente científicas, para fixar populações desviantes em uma situação de inferioridade... neste caso específico, as mulheres. Será que agora estamos fazendo isso por uma boa causa?

É assustador perceber que o outro é diferente. Agora, o que fazemos com isso? Na maioria dos casos, tentamos torná-lo alguma coisa de inteligível..uma vítima, ou um paciente hospitalar. Fico pensando o quão perturbador seria uma criança trans que não quisesse mudar seu corpo.. que não quisesse se tratar, se adaptar. Penso no quanto o discurso do "menino preso no corpo de menina" é um fantasma assustador que ronda os cis-héteros que assistem o fantástico, por isso apresentou-se a origem do problema e o tratamento, tudo numa tacada só. Vamos apaziguar a população brasileira! Só faltou um comentário do tipo.. vamos inventar scaners e em breve faremos o diagnóstico e o tratamento desses pobres coitados.

Sabendo que o que foi explicado no Fantástico é apenas uma hipótese (sim pesquisei isso e não existem provas ou estudos conclusivos que corroborem essa explicação da "formação do trans") arriscaria dizer que descobrir nossa identidade, seja de gênero, seja de cor, seja o que for, é um desafio para todos os seres humanos. Não quero negar aqui a singularidade do sofrimento das populações que se desviam da trilha de nossos padrões, adoraria que pudéssemos reconhecer que nosso ideal de normalidade é brutal em muitos aspectos. O que eu quero dizer é que encontrar nossa identidade não é uma coisa fácil, e como já disse no último post, o ideal de normalidade é justamente o último refúgio daqueles que ainda não sacaram essa verdade da vida e que todas as respostas que fecham a questão, como esse documentário tentou fazer, colaboram para o entrincheiramento da posição normativa.   

Se houvessem clínicas para mudar a cor das pessoas, o que pensaríamos disso? Você sofre racismo!? Por que você não virou branco ainda? Quantos negros não queriam ser brancos, sofrendo o diabo todos os dias com a discriminação velada de nossa sociedade dissociada cognitivamente... não seria justo oferecer isso a eles? Em breve teríamos uma horda de negros culpados por não terem se submetido à mudança de cor, afinal, sofrer racismo em uma sociedade onde a mudança de cor já está disponível seria uma burrice. O que os pais diriam se seus filhos quiserem mudar de cor? E se seus filhos odiassem sua cor? Redução de danos amigo... pra que continuar negro e sofrer? 

Por que discutir a mudança de cor quando a cor não é problema nenhum? Mas cara, ser negro em uma sociedade racista é uma... ok, não vamos mudar a sociedade racista, então vamos mudar a cor dos negros. 

Me desculpem a ironia, sei que o assunto é intenso e não quero aqui dizer que seria contra negros que se tornassem brancos, ou pessoas que mudem de sexo. Respeito o tema e usei esses exemplos para indicar que a questão dos trans vai muito além do que podemos definir como uma desordem de gênero cérebro-genitália e esse post é apenas minha maneira de protestar e mostrar que nossa cultura enxerga a sexualidade de uma forma muito besta e assutada, e que isso afeta e organiza seus filhos sem lhes permitir que falem a partir de sua singularidade, sem suportar seus questionamentos. Isso pode ser um indicador de que não suportamos nossas próprias questões a respeito da sexualidade.   

Diógenes andava com sua lanterna procurando um "homem". Eu acrescentaria, de cor certa, com o corpo certo, o emprego certo.. Onde ele está? Por que queremos tanto que ele exista?                     






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria