Por uma fé com sombras

A vida sem fé é um caminho sem sombras para nos consolar - foto retirada google imagens

"Os fundamentalistas religiosos se veem como se tivessem o remédio para as doenças do mundo moderno. Na realidade, são os sintomas da doença que pretendem curar." John Gray

Lembro-me de como vivia pelos idos de 1997 pela facilidade em associar o 7 com a 7ª série. Naquela época a magia da 6ªsérie estava em decadência, pois começávamos a ter notícias das turmas mais velhas, no caso o pessoal da 8ª série, e isso não era uma coisa fácil de digerir. Perder nossos amores para aqueles garotos mais velhos, sofrer um pouco de bulling, ficar feio, bigodinho, espinhas, brigas inexplicáveis, cusparadas caíam em nós como cocôs de passarinho. A vida tinha perdido o glamour que havíamos experimentado pouco antes, quando matávamos aula para fazer qualquer coisa e éramos os mais velhos do período da tarde.

Estudar a tarde era mais tranquilo para curtir a escola. Existia uma calmaria no ar e tudo aquilo era regado a muito Legião Urbana e partidas de futebol no clube dos oficiais. Depois que minha família mudou para a cidade, eu costumava alternar o ônibus com caronas de amigos e na época da 7ª eu costumava pegar carona com o Dudu e seu corcel 1, aquele modelo weekend. Achava um barato o seu Spera ligar o carro puxando dois fios desencapados que ficavam pendurados embaixo do volante.

O Dudu morava no Jardim Roni e de sua casa à minha custava uma caminhadinha de uns 15 minutos. Diante daqueles minutos escaldantes, normalmente trilhados tendo o cuidado de passar por todas as sombras possíveis, eu costumava pensar sobre a vida. Naquele percurso existe uma grande reta na qual eu entrava com um certo amargor no coração, e, sendo um pouco sincero demais, diria que algo como uma incredulidade insidiosa começou a se instilar em meu coração devido ao fato incontornável de ter que passar por aquela reta sem árvores para chegar em casa - todos os dias.

Não ter a doçura de uma sombra para me consolar era algo revoltante. Poderia dizer que o profeta Jonas tinha toda a razão em praguejar pela morte da plantinha que Deus havia criado para confortá-lo, pois ficar exposto ao sol é algo que mina a paciência de forma imperceptível. Acredito que caminhar por aquele trecho todos os dias secou meus últimos açudes existenciais, matando todos os galhos que haviam florescido em anos anteriores. Isso sem falar dos discos finais do Legião, tudo parecia muito deprê e sem sentido, não acreditava mais em nada, questionava tudo. Não frequentava a igreja, pensava que nada do que vivia podia ser explicado, nem havia uma boa razão para viver. Se tudo precisava de uma razão para acontecer, não conseguia encontrar uma que explicasse o que estava vivendo. 

Tudo estava acontecendo sem um olhar sobre mim - essa é a impressão que tenho hoje. Estudava, visitava amigos, ouvia música, mas nada parecia falar comigo. Nessa época encontrei um pastor em minhas idas para a fisioterapia, acho que como não tinha nada melhor para fazer acabei inventando algumas doenças e parte disso era ir nessas sessões de fisioterapia. Esse pastor me emprestou umas fitas com videos explicando a origem da vida de uma perspectiva criacionista que conseguiram revigorar a minha crença em Deus. Tudo era explicados por biólogos e uma penca de phds, e, agora sim, tudo fazia sentido novamente. Aleluia. 

Tornar a fé algo científico foi algo maravilhoso para mim, pois parecia recolocar o inexplicável da vida novamente em questão e isso me salvou na época. Esse tipo de abordagem é muito comum, sendo que várias religiões agora possuem explicações quânticas de seus fenômenos, procurando adequar sua mitologia à teoria científica, dizendo: isso não é algo que nós inventamos, isso é verdade porque é científico. 

Parece que a versão "cientifizada" da religião me afetou como uma nova doença imaginária e me integrou em um contexto que me tornava importante novamente e, veja só, fazendo sentido ainda por cima! uau

Eu havia provado do sabor amargo da deriva moderna, daquele estado de coisas que se assemelha ao sopão primordial do qual falam os biólogos quando narram a origem da vida. Elevado à 7ª série, estava flutuando sobre um mar negro de aminoácidos diante da pergunta: por que me combinar e virar uma proteína? Por que não voltar ao mineral e me dissolver no nada? Optei por engrossar as fileiras dos reacionários antimodernistas, como diz Zizek, em detrimento do secularismo liberal(aborto, casamento homossexuais, etc.).

Essa "luta" é muito sedutora. Vejo muitas pessoas embarcarem na crítica dos liberalismos, abraçando pessoas do calibre do Bolsonaro, apenas para fazer frente à dissolução moderna. Dentro desse pacote, coloca-se a crítica dos ideais da esquerda (direitos dos manos, politicamente correto, etc.), como se as utopias comunistas fossem um erro para o qual não estaríamos dispostos a cair novamente. Toda crítica possui um "comigo não", não caio nesse papo mole novamente! Digo "novamente", porque todos nós, alguma vez na vida, já acreditamos que pudéssemos mudar para melhor, daí dizer que toda mudança é "pra melhor" e usar isso para nos manipular! É o fim..afff

Acontece que essa postura não enfrenta a dissolução moderna, apenas foge e se entrincheira - desesperadamente. Quando era cristão vivia sonhando que estava fugindo de um monstro invisível e apavorante, esse era o meu sonho recorrente. Nesse sentido, não existem diferenças entre um fundamentalismo islâmico e os neoconservadores tupiniquins, a única diferença é que uns atuam no ponto final da política externa das grandes potências capitalistas, enquanto os outros operam na defesa dos poucos privilégios que essa mesma agenda exploratória ainda tem a proporcionar a seus cidadãos - de bem.

Estou a caminho de uma fé que não seja reativa, que não queira se defender de nada e que não precise da verdade científica para se tornar palatável. Uma fé que seja leve o suficiente para andar sobre as águas, sem aquela coisa do ...mas como vamos provar isso? Uma fé que violente a verdade do fato com tranquilidade e chute toda a história e toda ciência. Até agora, a coisa mais próxima que vi dessa visão de fé foi o cartoon Adventure Time.




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