Não precisa dar certo


Quem nunca seu pão em lágrimas comeu,
Quem nunca noites aflitas passou
Sentado, aos prantos, em seu leito,
Este não vos conhece, ó poderes celestes.

Vós nos conduzis em plena vida,
Vós deixais pecar o pobre,
Para então o abandonar à dor;
Pois toda culpa se expia neste mundo.

Quem à solidão se entrega,
Logo sozinho estará;
Todos vivem, todos amam,
E o abandonam à sua dor.

Sim, deixem-me com meus tormentos!
E se posso, por uma vez,
Sozinho, de fato estar,
Sozinho não estarei

Um amante rasteja, furtivo,
A ver se sua amada sozinha está.
Assim também, noite e dia, rasteja
Em mim, solitária, a dor,

Em mim, solitário, o tormento.
Ah, há de chegar um dia em que
Solitário em meu túmulo estarei,
E a dor enfim sozinho me deixará!

Goethe - Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

Os poderes celestes não são tão generosos aos olhos de Goethe, se comparados ao nosso querido Deus cristão. Temos uma tendência de pensar os poderes celestes como se eles estivessem torcendo por nós lá de cima, neste poema a coisa parece caminhar para um "tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor". A visão de deuses que nos perseguem implacavelmente me parece apontar um caminho mais humano, solidário, que acolha a todos pela miséria comum. 

Perceber os deuses como seres que nos pisoteiam ajuda a articular uma vingança possível sem peso na consciência e ainda me poupa o trabalhão que é explicar o mal no mundo, o mau existe e está caminhando por ai. Grande parte dos artigos de jornal poderiam ser poupados, poderíamos passar dessa sensação constrangedora que é contemplar o mal vociferar e atacar em plena luz do dia. As noticias descrevem em minúcias como é mau o presidente e seus asseclas, como gastam seu tempo planejando caos e golpes à democracia, deixando milhares de cidadão expostos à pandemia. Está cansativo acompanhar o noticiário - o mau existe, poderia acrescentar que não vamos mudar isso? Seria o cúmulo do cinismo os maus terem que se declararem bons, para melhor exercerem sua maldade?

Sim, deixem-me com meus tormentos!

Todos os noticiários do mundo, assim como todos negacionistas e terraplanistas se juntam ao coro de Afonso X, rei de Castela em 1252, que polemizou com a seguinte frase: "se eu houvesse podido aconselhar Deus na Criação, muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas." Todos querem salvar o mundo e apontar um caminho, auxiliando o bom Deus a recolocar as coisas nos eixos, nem que seja necessário matar uns 30 mil. Essa maldade que se traveste de redenção, ou contenção de desordem, ou combate às drogas, ou de crescimento econômico, ou de cuidado com os pobres é nauseante. Que falta faz um mau honesto!? Tipo o diabo no evangelho, vim aqui para matar, roubar e destruir... até o Lúcifer ficou legal na série de tv, a Malévola se redimiu e os vilões andam mudando de lado para dar um pouco de tutano nos heróis contemporâneos coitados. O argumento é: precisei ficar mau para lidar com a realidade, os bons são criados a leite com pera, a realidade exige uma dose de maldade pra você conquistar coisas, sabe? A política real exige alianças, precisamos ceder para conquistar o bem maior, etc.

      "Quando o homem de negócios censura o idealismo de seu office-boy, geralmente o faz numa fala mais ou menos assim:'Sim, claro, quando a gente é jovem tem esses ideais abstratos, e constrói castelos no ar. Mas na meia-idade todos eles se desfazem como nuvens, e a gente passa a acreditar na política prática, a usar as máquinas que tem e a conviver com o mundo como ele é'. Assim, pelo menos costumavam me falar na juventude senhores veneráveis e filantrópicos que agora ocupam honradas tumbas.
        Mas desde aquela época eu cresci e descobri que aqueles velhos filantrópicos estavam dizendo mentiras. O que de fato aconteceu é exatamente o contrário do que eles previram. Diziam que eu perderia meus ideais e começaria à acreditar nos métodos da prática política. Ora, eu não perdi meus ideais nem um pouco; minha fé nas verdades fundamentais é exatamente o que sempre foi. O que eu perdi é minha antiga fé infantil na política prática. Ainda estou muito preocupado com a batalha do Armagedom; mas não me preocupam muito as eleições gerais."    G.K.Chesterton

O argumento golpista de que precisamos de um estado de exceção para consertar as coisas, fazer umas coisas erradas por um bem maior não cola, assim como não estou disposto a fazer o que for possível para conter a pandemia, ou negá-la. Precisamos lidar com o fato de que a sociedade no fundo é uma doença pior que o corona, muito mais cruel, porque nós podemos escolher ser filhos da puta, deixar multidões famintas, doentes e desassistidas. A coisa que me incomoda nisso tudo é que os filhos da puta não tem coragem suficiente para se assumirem.

Eu acredito que a ética nunca deve ser abandonada, tipo o meu pão com manteiga. Fico pensando, porque diabos todo hora tem um &%$#! querendo relativar a coisa pra se dar bem, todo esquema de corrupção/golpista/filme com plot twist tem esse argumento. Ta foda. Que falta faz um Deus mau pra poupar tempo e bla bla bla, senhor faça um lugar para os maus, assim quem sabe um dia a gente consegue discutir problemas reais.

Quando eu era criança
Sem saber meu caminho
Voltei meus olhos errantes
Para o sol, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para escutar meu lamento,
Um coração como o meu
Para cuidar dos atormentados.

Quem me ajudou
Contra a cruel insolência dos Titãs?
Quem me resgatou da morte, da escravidão?
Não fizeste tudo isto sozinho,
Sagrado coração em brasa?
E jovem e bom, brilhavas
Enganado, agradecido pelo resgate
Daquele que dormia lá em cima?

Eu, honrar-te? Por quê?
Algum dia aliviaste o sofrimento
Dos oprimidos?
Algum dia secaste as lagrimas dos amedrontados?
Não fui levado à idade adulta
Pelo todo-poderoso Tempo
E pelo destino eterno,
Meus mestres, e os teus?

Imaginavas por acaso
Que eu fosse odiar a vida
E fugir para o deserto
Porque nem todos
Os meus sonhos em botão floresceram?

Aqui continuo sentado, forjando homens
A minha própria imagem
Uma raça para ser como eu
Para sofrer, chorar,
Deleitar-se e alegrar-se
E para desafiar-te,
Como eu.                                     Goethe - Prometeu   

Para mim, a ética sempre foi um desafio à Deus. Nunca pensei em ser bom para agradá-lo. Me responsabilizo para me apropriar de minhas próprias misérias. Isso é muito bom, inigualável diria.
Não precisamos ser perfeitos para nos responsabilizarmos, para cuidar de quem nos ama, e passar pelo inferno juntos.

Não precisa dar certo. 






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