O mundo está de ponta-cabeça



"Será suficiente aqui que eu tome como fundamento aquilo que deve ser reconhecido por todos, a saber, que todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso. Com efeito, disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem conscientes de suas volições(vontades) e de seus apetites, os homens se creem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram." pg.42 Espinosa

(Creio que se Freud lesse Espinosa, iria corrigi-lo e dizer que em sonhos podemos acessar as causas de nossos apetites.)

Compartilho com vocês uma epifania que me veio hoje, na hora do café da tarde, não faço a menor ideia do por quê. Será porque ela foi a minha carta da semana, sendo uma carta frequente nas minhas tiragens pessoais? Vejamos se as minhas viagens fazem algum sentido para você, desta feita, talvez eu consiga me libertar da sina do pendurado.

Sendo essa uma carta "velha conhecida", já faz um tempo que ando pesquisando seus significados. Geralmente ela se relaciona com um ponto limite, o fundo do poço, lá onde alcançamos uma revelação de algo que tem aprisionado e paralisado nossas forças produtivas.

Essa é uma carta relacionada com a iluminação ou uma percepção elevada, se aproximando da ideia do crucificado e do sacrifício. Esse arcano é um alerta para aqueles que gostam de ajudar e se entregar em proveito do outro, para que não venham a "perder a mão", sacrificando a própria vitalidade e liberdade.


O mundo está de cabeça para baixo 


Para o enforcado, é verdade que o mundo está de cabeça para baixo. Todos nós que olhamos o pendurado sabemos que o pobre está errado, mas como convencê-lo? É verdade para ele.

Quando dizemos para as pessoas que cada um tem a sua verdade, estamos no mesmo lugar do pendurado... errados, mas com razão.

O maior problema do humano é nossa natureza mista, complexa. Assim como possuímos um intelecto vasto e poderoso, podemos também ser amarrados e pendurados como um pedaço de carne inerte, impotentes. Amarrar um criminoso era uma punição antiga, isso me lembra do episodio em que Musashi, um dos maiores espadachins da história, foi pendurado em uma árvore pelo monge Takuan, passagem que antecede sua mudança de caráter.

"Furioso, o jovem Musashi gritava para que o monge o soltasse, mas esse apenas ria debaixo da árvore. Musashi cuspia, falava de forma grosseira, mas o monge apenas ria, até que disse:
- Essa sua raiva pessoal não serve para nada. Se sua indignação fosse maior do que você, poderia sair dessa árvore."

Nosso corpo pode ser amarrado, pendurado, cortado, queimado, etc. Nossa mente se enfurece! Como ela pode ser constrangida por tamanha humilhação? A razão que pode decifrar os maiores mistérios da natureza não pode se desamarrar, algo tão simples. Isso porque as cordas amarram o corpo e a mente.

A carta do enforcado é um convite a libertação da mente.


"...o objeto de nossa mente é o corpo existente, e nenhuma outra coisa." pg.61

A chave para a libertação do pendurado é perceber-se pendurado. Enquanto o pendurado se julgar "livre", entenderá logicamente que o mundo está de cabeça para baixo. Por isso é fácil acreditarmos em um Deus que criou todo o universo para nosso dispor, que tudo precise de um sentido e que existam coisas boas e ruins... superstição que podemos chamar de antropocentrismo. 

O ser humano nasce completamente dependente de sua mãe, ligado no inicio pelo cordão umbilical, imagino que seja a mesma corda que prende nossa pobre figura. Nascer desamparado e dependente é o grande pressuposto da psicanálise, que permite desdobrar toda uma tapeçaria de interferências que nos constitui como adultos "independentes" - o pé de cabra freudiano, o Édipo. Por isso existem dois suportes para a figura, um pai e uma mãe. Acredito que todas as podas representam nossa ancestralidade, mortos para cumprir a missão de sustentar a próxima geração. Cada geração cumpre sua nobre tarefa, suportar a próxima em sua ilusão de autonomia.

Quando a mente percebe-se em um corpo, limitada e constrangida pela finitude, pode então recolocar sua visão de um ponto de vista adequado:

Eu estou de cabeça para baixo.
Isso, contudo, pode ser corrigido.

Para Lacan a fase do espelho encerra a majestosa ilusão de um eu/corpo uno e coeso, anteriormente caótico e fragmentado pela imaginação. Creio que aqui Dolto faça mais sentido, dizendo que a visão do espelho encerra uma castração para a criança, pois a confronta com uma percepção clara de seus limites corporais, sendo necessária a intermediação de um adulto, uma espécie de apresentação ao bebê de sua própria imagem.

Platão parecia entender o que diz Dolto quando relata em sua alegoria da caverna:

"Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente."

A onipotência ilusória da mente deve ser confrontada com a impotência do corpo, pendurado e inerte. Isso seria uma nova experiencia de encarnação, necessária para que o indivíduo consiga então se apropriar de sua corporalidade e se por de pé, vendo o mundo como ele de fato é.

Essa conversão é o caminho indicado pelo arcano, marcando o início de uma fase onde a "velha identidade" deverá morrer para abrir caminho para o segundo nascimento.


Bibliografia

Etica de Espinosa
108 Contos e parábolas orientais - Monja Coen
Alegoria da caverna - versão pdf


    

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