Como acessar o inacessível?

Augustine (2012)


"A contratura do braço e perna direitos persistiu, bem como a anestesia de ambos, embora esta não fosse profunda. Houve um alto grau de restrição do campo visual: num buquê de flores que lhe proporcionou muito prazer, só pôde ver uma flor de cada vez. Queixava-se de não conseguir reconhecer as pessoas. Normalmente, dizia, fora capaz de reconhecer os rostos sem ter de fazer nenhum esforço deliberado; agora era obrigada a fazer um laborioso “recognizing work” e tinha que dizer a si mesma: “o nariz dessa pessoa é assim e assim e o cabelo é assim ou assado, de modo que deve ser fulano”.

(...)

Nesses momentos, só falava inglês e não conseguia compreender o que lhe diziam em alemão. Os que a cercavam eram obrigados a dirigir-lhe a palavra em inglês, e até a enfermeira aprendeu, até certo ponto, a se fazer entender dessa maneira. Anna, porém, conseguia ler em francês e italiano. Se tivesse que ler uma dessas línguas em voz alta, o que produzia, com extraordinária fluência, era uma admirável tradução improvisada do inglês."

Estudos sobre a histeria - caso Anna O

O caso Anna O foi o marco zero da psicanalise. Como vocês podem perceber através dessa breve citação, ela sofria de vários sintomas, dentre eles problemas visuais, paralisias corporais, problemas na fala e alterações profundas de comportamento. A histeria era um desafio à medicina da época, porque os sintomas não possuíam relação direta com adoecimentos orgânicos e seguiam padrões e manifestações inexplicáveis do ponto de vista da patologia tradicional. Com Charcot, a medicina começou a engatinhar nas interferências do universo psíquico no somático, pois ele descobriu que a hipnose era um instrumento eficaz para "desligar" os sintomas. Para os interessados, indico o filme Augustine de 2012, retrata bem a maneira bizarra com que a medicina tratava as mulheres histéricas no final do XIX. 

Os sintomas acima descritos se assemelham em muito com o que vemos nos filmes de terror sobre possessão, como o filme O Exorcista. Mudanças profundas de humor, espasmos, ataques epilépticos e distorções de fala, como se um outro ser estivesse possuindo o corpo da mulher, geralmente uma garota ingênua e super religiosa. Esse território cinzento entre medicina e religião é algo fascinante. Acho muito interessante a forma como a psicanalise elaborou uma metodologia que nos permitiu acessar um universo fora do alcance da medicina tradicional. A dificuldade em se navegar nesse cenário se explicita inclusive no caso Anna O, quando a paciente se disse grávida do Dr. Breuer, fazendo com que ele abandonasse o tratamento para salvar a sua reputação diante da sociedade vienense. 

O espanto da medicina diante da histeria, assim como a descoberta da hipnose e das relações entre certos fluidos magnéticos, ou magnetismo animal de Mesmer, sempre estiveram no limite entre medicina e charlatanismo. Podemos citar aqui a investigação de 1780 instaurada por Luis XVI, com cientistas como Lavoisier e Benjamin Franklin, para averiguar se realmente existia o tal magnetismo animal, retrata bem essa relação estranha entre o psiquismo, ciência e religião que fervilhava nos séculos XVIII e XIX.

"Não podemos impedir-nos de reconhecer... um grande poder que agita os doentes e os domina, e do qual o magnetizador parece ser o depositário... o menor ruído imprevisto causa sobressaltos, e observou-se que a mudança de tom e de compasso nas árias tocadas no pianoforte influía nos enfermos, de tal sorte que o movimento mais vivo os agitava mais e renovava a intensidade de suas convulsões... Todos se submetem àquele que os magnetiza; por mais que estejam num aparente torpor, sua voz, um olhar ou um sinal os retira disso... Os membros da comissão observaram que, no conjunto dos doentes em crise, havia sempre muitas mulheres e poucos homens; que essas crises levavam uma a duas horas para se estabelecer; e que, a partir do momento em que uma se instalava, todas as demais começavam sucessivamente e em pouco tempo." A razão e o coração pg.21 

Essa descrição da sessão do tratamento do método mesmeriano me lembra uma sessão com ayahusca, conjugando música e transes coletivos. Claro que rapidamente a comissão perde o fio da meada por tentar enquadrar o fenômeno em moldes científicos, afinal, tentar dissociar o contato humano entre o magnetizador e seus pacientes para isolar os componentes físicos que estavam operando na sessão iria destruir a própria condição de instalação do fenômeno interpessoal que se manifestava na terapia mesmeriana. O que Freud descobriu com Anna O, a transferência, era o ponto que permitia ao terapeuta acessar o paciente, dotando suas palavras de uma "efetividade terapêutica". Tal fenômeno, rechaçado por Breuer, invisível à arrogância científica de Charcot, era o liame que permitia o fenômeno da sugestão se instalar.

É impressionante como mulheres aterrorizadas por sintomas e transes desconhecidos conduziram homens da ciência por um caminho tortuoso, fundamental para construção da metodologia da nascente psicologia, como se estivessem dançando uma valsa entre cegos. Nada ali poderia ser isolado em um laboratório, comprovado por instrumentos de medição, contudo, sintomas e curas habitavam a realidade das reuniões do magnetismo animal. Como acessar um fenômeno cuja causa não poderia ser isolada em um laboratório? Seria como estudar um buraco negro.

Para Freud avançar em seu método ele precisou abrir mão de certas certezas que o homem da ciência parece possuir tranquilamente pela transparência do vidro e pela pureza de seus reagentes. Esse é o caminho que está diante de nós na contemporaneidade, devemos avançar na incerteza. Aqui a psicanalise é de muita utilidade, assim como uma abertura para o paranormal poderia ser interessante para a ciência.  

Acredito que nossa relação com o conhecimento precisa avançar sobre o desconhecido, para elaborar uma metodologia da incerteza. Seria o estudo das probabilidades, das turbulência e atratores, das interferências entre o observador e seu objeto de estudo um território mais humano para as ciências e para o futuro do conhecimento? Creio que sim. Acredito que a incerteza nos faz mais humildes do que a certeza. A certeza sempre carrega um grau de arrogância, seja ela científica ou moral, contra a qual somos incapazes de argumentar, isso sempre nos impede de ouvir e acessar o outro.

A questão está lançada: como elaborar um método da incerteza? Como lançar as bases de uma ética do absurdo e uma ciência do incognoscível? Uma biologia do que não é vivo? É isso e nada menos o que se faz necessário para conhecer o coração e seus afetos. 

"Bailly e os outros membros da Comissão - dentre eles, Lavoisier, Franklin e Guillotin -, que assinariam o único relatório público, recorreram ao rei, à autoridade, frente à ameaça que o magnetismo animal fazia pesar sobre os costumes: emoção sexual provocada pelo magnetizador, da qual ele ou algum outro poderia abusar, apego, hábito, etc. Cabia ao rei decidir e agir com os instrumentos que lhe eram próprios: a lei e a polícia." pg.25

À comissão, coube passar o bastão para o rei definir o que fazer com o que eles julgaram inacessível aos seus métodos, uma coisa que normalmente fazemos quando nos deparamos com o desconhecido.  


*O coração e a razão - a hipnose de Lavoisier a Lacan, Léon Chertok e Isabelle Stengers

  

     

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